As desventuras de Égout | Conto de Fantasia Medieval

Escrito por: Renato Soares

Égout nunca fora dos mais sortudos, mas sempre fora obstinado. Acompanhe as desventuras de Égout, e descubra que até o poço mais profundo possui uma saída. Um conto para maiores de 12 anos

Era perto da hora do almoço em Luskan. Conhecida como a Cidade das Velas, uma cidade portuária na foz do Rio Mirar, na Costa da Espada do Norte. Se fosse um lugar normal as crianças estariam brincando, contudo houve uma briga.

O pestinhas tinham por volta dos 7 anos, de um lado um rapaz magro, pele escura, orelhas pontudas, olhos amendoados e cabelos aparentemente prateados, naquele momento eram beges de tão sujos. Ele estava dentro de um saco de grãos com aberturas para os braços, pernas e a cabeça, considerando-o sua veste.

Do outro, um garoto de aparência robusta, ossos largos, cabelos encaracolados, amarelos e brilhantes. Seus olhos eram azuis como um céu límpido de uma tarde primaveril e suas vestes eram de tecidos caros, tão bem alinhados quanto fosse possível a um excelente alfaiate de uma família abastada.
As demais crianças torciam, gritavam e incentivavam a briga.

Ambos rolavam pelo chão aos tapas, mordidas e beliscões. E tão logo a disputa se encerrou, todos começaram a debandar exceto o perdedor, que deitado no chão levantou o braço esquerdo, apontou o punho cerrado para o céu e disse em tom de ameaça:
– Se insultar minha mãe novamente, William, provará minha ira mais uma vez!!!

William apenas se virou, cuspiu sobre o derrotado e disse:

– Vá se danar Égout!!!

Ambos voltariam a brincar e a brigar novamente. Afinal, assim eram as crianças daquela região.

O jovem William sempre diminuía o pobre Babel, lhe atribuía apelidos, entre eles, um que vai carregar pelo resto da vida: Égout ou esgoto em uma língua antiga. Idioma do qual o rechonchudo se gabava por saber algumas palavras. Em contrapartida, o pobre garoto jamais se apequenou e não se deixava insultar, apesar de sempre apanhar.

Assim era o relacionamento de William e Babel. O primeiro, um garoto de classe média alta, cujo pai era um importante ourives da região. O segundo, um bastardo, cuja mãe trabalhava como cortesã, na taverna Jax Caolho, a mais frequentada da cidade.

As confusões dos dois meninos, sempre repercutiam pela cidade. E nesse momento os amigos de sua mãe, em sua maioria músicos da taverna, geralmente intervinham. Eles iam resgatar o garoto maltrapilho, ofereciam-lhe banho, remédios, comida e um aposento para repouso. Além é claro de entretenimento e ensinamentos, músicas e rimas, a pedido da senhora Vivian Durand, a meretriz mais atraente da bodega local ou simplesmente a mãe de Babel, uma elfa negra legítima.

Apesar de sua profissão, Vivian fazia todo o possível para estar presente na vida de seu filho, muito amável diariamente lhe contava uma história fantástica, advinda das aventuras de seus amantes ou mesmo dos livros que gostava de ler.

Nesses momentos mais intimistas, o garoto chorava, contava sobre suas derrotas, seus sentimentos e perguntava sobre o paradeiro do pai. E sua mãe sempre lhe dizia palavras doces e reconfortantes, mas mudava de assunto, lhe pedia para esquecer aquele que jamais retornaria.

Com o tempo o jovem, Babel “Égout” Durand, começou a entender o que sua mãe fazia, e porque desconversava quando o assunto paternidade vinha à tona. Passou a buscar alternativas para tirá-la dessa vida.

Ele começou a trabalhar na taverna aos 10 anos como aprendiz de cervejeiro. Aos 12 assumiu o cargo de atendente e aos 14 tornou-se balconista taverneiro. Todavia, o dinheiro que o trabalho lhe assegurava era insuficiente para realizar seu sonho.

Um dia, enquanto fazia compras pela cidade, envolto em seus pensamentos derrotistas e sobre como lucrar mais, avistou uma moça encantadora. Era linda, esguia e tinha a pele branca como a neve, os cabelos negros como a mais densa escuridão noturna, olhos cor de mel tão claros quanto era possível e lábios praticamente simétricos, que se assemelhavam a um arco de cupido retesado.

Babel só conseguia enxergar a bela garota. Mais tarde soube que tratava-se de Arwen Fay, filha de uma das famílias nobres mais ricas da região.

Foi amor à primeira vista, mas também um infortúnio, pois se não conseguia nem ao menos tirar a mãe daquela vida, como causaria boa impressão na garota de seus sonhos?

A resposta era uma só: trabalharia mais do que antes.

Ele procurou os bardos da taverna, que lhe ensinaram alguns truques sobre entretenimento, inclusive sobre interagir com garotas de maneira cavalheiresca.  O que lhe rendeu um novo ofício e também mais gorjetas, devido a predileção dos clientes por seu atendimento, cheio de floreios e frases caricatas.

Mas sua ansiedade juvenil era deveras inquietante, foi quando a oportunidade de se aproximar de sua bela apareceu, no festival de primavera. Um evento especial feito para a nobreza, bastava entrar e estaria frente a frente com sua paixonite.

E após outra briga com William, que se gabava por ter acesso ao festejo frente aos amigos, Babel conseguiu as entradas. Durante o embate, o garoto tomou os ingressos de forma sorrateira… e outra surra.

O rapaz tratou de comprar roupas apropriadas à ocasião, passou dias lavando seus cabelos encardidos e pediu para que sua mãe lhe fizesse um penteado charmoso.

Na fatídica noite de pompa, com os mais variados nobres, e obviamente deslocado, Babel partiu para a ação e logo conseguiu uma brecha para cortejar sua dulcinéia.

Tudo se encaminhava bem, o galã conseguiu tomar Arwen para uma dança, fez alguns meneios insinuantes e usou palavras doces ao pé do ouvido. A efetividade de suas ações foi delatada pelo sorriso e face ruborizada de sua amada, contudo, ao perceber a presença do bastardo da taverna, os pais de Arwen foram ao seu encontro no meio do salão, puxaram-na de seus braços, lhe insultaram e por fim o jogaram na sarjeta.

Mesmo aos cacos e com o orgulho em frangalhos, proferiu-lhes uma promessa:
– Vou ficar tão ou mais rico que vocês e jamais passarei por tal humilhação novamente!

Todos apenas riram das asneiras daquele degenerado.

No dia seguinte, Babel chamou sua mãe e lhe disse:

– Vou embora da cidade, pois preciso juntar dinheiro suficiente para deixarmos essa vida, não aguento mais passar por humilhações e apenas com o meu trabalho atual é impossível, morreremos de trabalhar e continuaremos pobres.

O jovem, que havia completado 15 anos, juntou alguns pertences e saiu para desbravar Faerûm. No início apenas se apresentava com os demais bardos, com o qual aprendeu a tocar vários instrumentos. Eram aclamados por onde passavam. Ao longo de suas apresentações, usava a alcunha de Durand.

Logo foi convidado por um grupamento militar da região, para se juntar ao batalhão de música e servir à nação. E durante o tempo de guarnição, aprendeu a manusear armas e a rigidez das rotinas da corporação. Contudo, apesar de ganhar mais do que antes, ainda não era o suficiente para que sua mãe pudesse se aposentar e a sensação de incapacidade sempre retornava.

No quinto ano de exército, o soldado Durand havia desaparecido durante um cerco e foi dado como morto. A verdade é que ele havia desertado, após ouvir rumores sobre cultos que reverenciavam entidades sobrenaturais, onde os sacerdotes recebiam altos valores dos fiéis. O interesse foi tamanho que resolveu simular seu desaparecimento e buscar mais informações a fim de se tornar um acólito.

Novamente o garoto se aventurou em meio a pessoas perigosas, no Culto do Ódio Uivante, adoradores de Yan-C-Bin, contudo, algum tempo depois percebeu que para ter acesso aos ganhos da organização teria que subir bastante na hierarquia, isso lhe custaria anos de trabalho e uma lavagem cerebral. O pensamento da seita já havia começado a perverter sua mente e lhe desvirtuar do seu objetivo. Foi então que reuniu forças, recolheu alguns pertences e partiu no meio da noite.

A experiência, fez o meio-elfo se afundar em sentimentos negativos, ter pensamentos suicidas, comer mal e dormir o dia todo por quase seis meses. Nesse período conturbado, o jovem usou seus ganhos para garantir um teto e alimentação. E foi a imagem de sua mãe que o manteve firme, para poder enxergar a saída da escuridão e recuperar-se do abuso espiritual e emocional.

O rapaz, escondeu-se das facções por anos e após conseguir apagar seu rastro dos cultistas, retornou para o seu objetivo. Não sem sequelas, adquiriu um tique que afetava seu sistema motor e o fazia estalar o pescoço a todo o momento.

Aos 28 anos e mais maduro, Durand havia adquirido uma rede de contatos interessantes o suficiente para ser convidado a filiar-se aos Harpistas, recusou de pronto, pois não queria perder o foco novamente.

E com 35 anos, havia conseguido juntar bens suficientes para finalmente dar a vida que sua mãe merecia e tomar a mão de sua amada em casamento. Porém, a vida lhe reservava mais um duro golpe. Ao chegar na cidade descobriu que Arwen havia se casado com William e a desolação se tornou ainda maior quando soube que sua mãe estava doente há algum tempo. À essa altura a bela Vivian, uma drow de 170 anos, havia vivido ao máximo.

Poucas semanas depois, sua mãe veio a falecer. A vida de Durand tinha perdido o sentido, passou anos trabalhando e não conseguiu alcançar seus sonhos. E como meio Elfo, ainda viveria por mais de 100 anos carregando tal fardo.

Após o sepultamento, ele foi caminhar pelas ruas de Luskan, com um olhar melancólico e distante. Em sua mente inquieta, se perguntava: com toda aquela pobreza e sofrimento, de onde os cidadãos arrumam forças para continuar? Porque apenas os nobres viviam com pompa e suas crianças eram alfabetizadas por cavaleiros e damas da corte?

Era preciso fazer algo a respeito, ou aquele mecanismo faria mais vítimas, e decidido a enfrentar essa desigualdade, o rapaz se dirigiu até a taverna e pediu uma bebida, enquanto pensava sobre tudo aquilo e lutava contra toda a carga emocional negativa que absorveu ao longo dos anos.

Foi quando escutou bucaneiros conversando sobre os ganhos que tiveram após saquear um navio mercante, e presumiu: “Já que os ricos roubam os pobres sob a cobertura da lei, porque não roubamos os ricos sob a proteção de nossa própria coragem?”

E com determinação, se aproximou do grupo, declarou seu nome e expôs sua ideia. À mesa, uma tiefling, um halfling e um draconato, soltaram gargalhadas e pediram para que ele se retirasse, pois pirataria não era um conto de fadas e ele já havia incomodado demais sua refeição. Ele não arredou o pé e acabou espancado, pelo gigante escamoso.

Lá estava Égout novamente, no chão, após uma bela surra. Por um momento pode ouvir a cacofonia de vozes de seus amigos de infância, como se estivessem ali torcendo para que ele não se levantasse enquanto proferiam seu apelido em coro: Égout… Égout… Égout…

Entretanto, mais uma vez, Babel se agarra a sua perseverança, ergue seu braço esquerdo, aponta o punho cerrado para o teto e diz:

– Se me aceitarem, prometo que serei útil, fiel e que essa será a última vez que me verão nessa posição, ao menos antes do fim de minha existência.

Anne Bonny, Ella Fitz e Arslan se entreolharam, abismados com tamanha perseverança e convicção. Foi então que o imenso lagarto lhe estendeu a mão, o ajudou a se levantar e disse: Não haverá mais dias fáceis como este meu amigo, mas por enquanto brindemos em razão da chegada do novo membro da nossa tripulação, e todos assentiram com a cabeça.

O jovem que passou anos em busca de mudar a vida da sua amada mãe sem sucesso e havia acabado de perder tudo, finalmente sentia que as coisas iriam mudar, pois pela primeira vez conseguiu alcançar um de seus objetivos.

E agora, com um novo ideal de liberdade, ele vive no Mar com a convicção de ajudar seus novos amigos e os menos abastados com os ganhos nas incursões, até então, sem voltar a provar insucessos.

Daquele dia em diante passou a se chamar apenas Babel Égout.


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