Bem-vindo à selva | Conto de Horror

Escrito por: Vinicius Carneiro

Em uma incursão para retirada ilegal de madeira um grupo de amigos pode ter encontrado algo mais que árvores. Indicado para 16 anos ou mais.

Bem-vindo à selva.

A chapada diamantina é linda. Quando subimos o Morro do Pai Inácio fiquei sem fôlego, a paisagem exuberante era fantástica! Passamos o dia visitando pontos turísticos, e à noite resolvemos cumprir com nossos objetivos, indo pra Lençóis há uma mata. Muito bonita e de árvores altas, seria como um cerradão, mas bem úmido, algo interessante de se ver. Afonso, Sérgio, Fabrício e eu (Saulo), estávamos lá para explorar, nossa missão era conhecer a mata local e marcar algumas árvores para o abate.

Eu sou negro, tenho cabelos curtos, estatura mediana, e um corpo musculoso, não vou à academia, meu trabalho é pesado, sabe? Afonso é branco, tem cabelos ruivos e nariz aquilino, é seco feito um galho, mas pode apostar que não iria querer brigar com ele. Sérgio é baixinho, barriga de cerveja no estágio 2, igual o tiozão do churrasco, pele morena e careca, tem pavio curto. Fabrício é moreno, tem cabelos curtos e corpo mediano, não é musculoso nem gordo e nem magro, brinca com tudo e pode ser verdadeiramente irritante.

Era coisa fácil, entraríamos dali a uma semana na mesma mata, derrubaríamos as árvores marcadas durante a noite e faríamos alguns milhares de reais. Mamata! Para que preservar aquilo tudo? Íamos retirar grandes árvores e depois o governo que recuperasse a área. Sou cidadão! Tenho direito a uma fatia daquilo. Assim eu pensava. Acreditava que essa conversa de conservação era coisa de ecoxiita.

— Todo mundo pronto? — Perguntou Sérgio.

— Nasci pronto — respondi animado— tô vendo esse verde todo aí virar verdinhas.

— Verdinha o caralho — respondeu Fabrício — meu negócio é tabaca.

— E mulher gosta de quê mesmo? Seu frouxo! — respondi rindo.

— Frouxo é seu passado, caia dentro se não gostou — respondeu ele bem-humorado e dando soquinhos em meu ombro.

— Parem com essa putaria vocês dois. — Afonso falou — Temos um objetivo aqui. Não descanso enquanto não cumprirmos.

— Você é um velho impotente, sabia? — respondi rindo.

— Vai se foder!

A mata era composta por árvores espaçadas e em alguns momentos ficava mais densa. O chão era completamente coberto por folhas secas, ouvíamos cada passo que dávamos ali. As copas  chacoalhavam-se com o vento, tornando a noite ainda mais lúgubre para aquele local. Era possível ouvir alguns animais, corujas ululavam e nos longos momentos de silêncio ouvíamos os insetos se movimentarem sobre e sob a folhagem. Era nesse cenário que precisaríamos andar durante horas, e ao longo de quilômetros. Fizemos isso das 19h até aproximadamente às 2h da manhã.

A noite estava escura, pois não havia lua, isso nos obrigava a usar as lanternas o tempo todo. As árvores se assomavam à nossa frente, marcamos cada uma cujo tronco oferecia a possibilidade de corte, por mínima que fosse. Queríamos dinheiro, e a mata ali proliferava a anos. O tempo passou e não percebemos, até que em um certo momento sentamos para descansar e ouvimos algo. O estalar do galho foi alto e claro, era inconfundível, alguém estava ali. Sacamos rapidamente nossas armas e Sérgio gritou:

— Apareça filho da puta! Se acha que vai nos seguir está fodido. — Outro estalar a frente e ele disparou 3 tiros consecutivos com sua semiautomática .44. Tudo o que obtivemos em resposta foram passos rápidos e constantes correndo à nossa direita.

Todos seguimos atrás dos sons, as lanternas varriam o espaço à procura do culpado, nossas mochilas ficaram para trás, com mantimentos e os sacos de dormir. Precisávamos pegar quem nos havia seguido, qualquer denúncia iria atrapalhar nossos planos, e Deus sabe lá quando conseguiríamos outra brecha.

— Sabe o animal que mais odeio? — gritou ele novamente. — Peru! – seguiram-se mais tiros.

O fato é que corríamos no meio da mata, com a luz das lanternas como nossas guias, e convenhamos que isto é mísero se considerada a imensidão do local e a escuridão que nos circundava. Ignoramos todos os nossos instintos. Nos sentíamos os predadores ali: os únicos que representavam algum risco a alguém. Se bem soubéssemos o que nos aguardava teríamos dado meia volta do acampamento e ido embora para nunca mais retornar.

Como que surgido de lugar algum uma criatura passou em nossa frente. Era completamente peluda e pequena como uma criança de 7 anos. Passou tão rápido, que não conseguimos ver mais detalhes. Percebemos, no entanto, que aquilo não era humano: parecia um macaco sem rabo, correndo de pé, com uma grande cabeleira vermelha.  Em seguida ouvimos um grito de gelar a espinha, e todas as árvores balançaram ao nosso redor. Estávamos apavorados agora e atiramos a esmo, buscando acertar alguma coisa, porém nada vimos.

— Cara, precisamos voltar, isso aqui vai dar uma merda muito grande! — falou Fabrício.

— Sim, vamos para o acampamento, e amanhã decidimos o que fazer — respondeu Afonso.

Andamos até o acampamento, quase nos perdendo no caminho, a nossa sorte foram os rastros que deixamos ao nos movimentar pela mata. Na chegada avistamos primeiro os sacos de dormir, em seguida as coisas que trouxemos com eles, que estavam todas espalhadas. Não havia mais comida nem água ali, as mochilas foram reviradas, cada saco plástico rasgado, e o chão estava coberto de pequenas pegadas, muitas delas. Pareciam pegadas de macacos. Algumas vezes eram tantas que dava a impressão de que eles andavam ao contrário.

— Mas que porra! Reviraram todas as nossas coisas! — Gritei frustrado.

— Parece que um time de futebol infantil andou aqui. — Respondeu Sérgio evidenciando as pegadas.

— Vamos sair dessa floresta cara, se ficarmos morreremos aqui. — Fabrício estava pálido feito papel.

— Está com medo desses macacos Fabrício? — perguntou Afonso.

— Macacos? Vocês não viram?

— Vimos o quê? — Perguntei.

— Os cabelos vermelhos, cara!

— E que porra tem isso? — perguntou Sérgio.

— É o curupira porra! Um monte deles! Estão atrás de nós porque viemos derrubar a mata!

— Você fumou uma antes de vir? São animais! Malditos animais! — Gritou Sérgio visivelmente perturbado.

— Não adianta ficarmos aqui discutindo, ficaremos ou vamos voltar? — perguntei.

— Dois de nós dormimos e os outros dois vão ficar de vigia. Voltar agora seria arriscado, a visibilidade está horrível — falou Afonso.

— Eu fico com o primeiro turno! — falei.

— Eu também! — falou Fabrício.

Sérgio se colocou em frente ao Fabrício e falou:

— Se algo acontecer, vê se não foge feito uma menina, “tá” ouvindo? Se “tu” fugir, eu te acho depois! “Tô” vendo sua cara de quem quer correr.

Fabrício suava, e a noite estava fria. Eu sentia a mesma sensação ao ver ele, parecia que ia correr a qualquer momento, seu corpo tremia.  Sentamos próximos e de forma que víssemos a nossa retaguarda e de nossos companheiros. Estávamos ambos com as armas em punho, prontos para agir a qualquer momento. Passamos por alguns minutos em silêncio, ouvindo apenas o farfalhar das folhas, imaginando vultos entre os inúmeros troncos. Ao menos sabíamos que se algo caminhasse ali faria barulho nas folhas secas. Então ele olhou pra mim e falou:

— Velho, eu nunca fugiria. Agora escute, eu sei que vou morrer aqui.

— Como assim cara? Vamos todos sair daqui bem amanhã! — respondi.

— Meu avô, sabe? O velho Bernardino? — assenti. — Ele me contou, quando era novo morava em uma fazenda, tinha uma grande mata lá, foi quando mandaram uma equipe “pra” desmatar. Algo de muito ruim aconteceu, apenas um escapou e não parava de repetir: “curupira, curupira”. Todos achavam que era louco e que deveriam prendê-lo, então assim o fizeram. Durante a noite algo saiu da mata, e tentou invadir a casa onde o rapaz estava cativo. Meu avô levantou achando que aquilo era uma tentativa de fuga. Foi então que ele viu, pequeno e com a cabeleira vermelha, o curupira tentava derrubar a porta. Ele disparou sua arma e o feriu, a criatura fugiu “pra” a mata, e ele libertou o cara, juntos atearam fogo na mata. De lá ele nada mais soube, porém eu sei que o curupira veio cobrar a dívida dele, e em alguém que merece…

— Isso é só uma história Fabrício, não caia na superstição de seu avô. — Interrompi.

Ouvimos um som estridente, como quando algo corta o ar rapidamente, em seguida um tombo e um gorgolejar! Olhamos para nossos amigos e um deles agora segurava a garganta com algo enfiado nela. Corri para ajudar, era Sérgio o atingido. Um objeto semelhante a uma ponta de flecha estava fixo em sua jugular. Seu formato, no entanto, lembrava uma folha com um sulco lateral que estava fixa em um instrumento de madeira reto culminando em uma pequena área rombuda, aparentemente servindo de contrapeso ao ser arremessado. O sangue brotava em profusão, ele olhou pra mim, nunca esquecerei o desespero e o apelo por ajuda naquele olhar, mas ali nada mais restava a ser feito. Retirei o objeto e tentei estancar o sangue, senti a vida de Sérgio escorrer entre meus dedos, quente e pegajosa, o tempo parou a minha volta, até que ele finalmente morreu.

Quando dei por mim estava sozinho. Ouvia os gritos de meus companheiros pelo bosque. Catei minha arma, acendi a lanterna e me preparei para correr também. Foi aí que me virei e lancei o facho da lanterna em direção ao caminho que fizemos na vinda. Lá estava ele, seus olhos grandes e negros me olhando. Apesar da cor, exibiam um brilho claro de inteligência, seu rosto parecia-se com o de um macaco, porém sem pêlos, tinha braços curtos e pernas curtas, seu tamanho não passava de 1,10m. Quando me viu hesitou, me encarou por alguns minutos e em seguida pegou o corpo de Sérgio, o erguendo sozinho e dando uma última olhada para trás saiu andando. Não sei por qual motivo não fui atacado até hoje, mas sei que não pude atirar, certamente morreria ali caso o fizesse então corri, corri como nunca.

Próximo ao amanhecer ainda faltavam alguns quilômetros de mata para atravessar, e ao contrário do que pensei não me sentia seguro, ou sozinho. Tinha absoluta certeza que estava sendo seguido. Após algum tempo vi algo jogado à frente, parecia um animal recentemente morto, estava em meu caminho e rapidamente me aproximei, lá estava ele: Era Fabrício. Seu corpo havia sido mutilado, não era possível ver mais vísceras e no lugar de seu ventre estava um grande buraco. Duas daquelas pontas de flechas enfiadas no crânio, ambos os cabos haviam rompido no processo. Seu rosto fora parcialmente comido. Eram evidentes as marcas das presas que rasgaram sua carne, seus pulmões, coração e olhos também não estavam mais lá. O cadáver fora criteriosamente devorado, isto supondo que ele já havia morrido quando iniciaram o processo, e deixado propositalmente em meu caminho.

Não sei como pude permanecer parado tempo suficiente ali para observar o que acontecera, poderia ter sido o medo, a curiosidade mórbida em saber o que acontecera ali, ou ainda um sentido de saber o que me aconteceria. O pavor voltou a dominar meu coração. 

Corri mais uma vez, ignorando o cansaço. Meus músculos doíam, estava sujo e com sede. No caminho perdi minha arma bem como a vontade de lutar. O único impulso que me restou foi a fuga, fuga de algo incompreendido por mim, que poderia apagar minha existência.

Com a alvorada alcancei a borda da floresta, ali estava o carro à minha espera. Uma vez mais notei algo errado, a chave estava na porta da caminhonete que estava aberta. Não me importei com as discrepâncias, pensei que o único jeito de escapar vivo dali era o veículo. Se fosse pra morrer seria buscando a vida. Nada me aconteceu, no entanto, tirei a chave da porta, entrei e vi o último resquício de Afonso. Um dedo fora arrancado, o que ainda portava seu anel da sorte: entalhada no ouro uma caveira me encarava do banco, do tamanho duma ameixa seca e preso no indicador como costumava usar. Em um gesto de asco e fobia, peguei aquilo arremessando em seguida longe do carro. Entrei fechando a porta, dando antes de sair uma última olhada na floresta à minha esquerda: lá, na penumbra da alvorada, vi olhos brilhando a me encarar.

Por: Vinicius Mendes Souza Carneiro

12 de agosto de 2016


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