Gestação | Conto de Horror

Escrito por: Vinicius Carneiro

Kiara acabou de passar por um trauma profundo, na busca por vingança pode ter encontrado algo que não procurava. Um conto para maiores de 16 anos.

O cheiro do piso imundo, o chão de paralelepípedo molhado, as sombras daquele beco, a parede descascada, nada daquilo sairá da minha mente. Foi roubado mais que o consentimento, foi levada a minha dignidade, minha autoestima, naquele momento minha personalidade foi quebrada. Um trauma como aquele nunca se esquece, não passaria em branco na mente de alguém, mulher alguma suporta um estupro.

Era noite de quinta—feira, minha semana não havia sido das melhores, até ali, — mal sabia eu como iria piorar — na tentativa de melhorar a “vibe” resolvi sair com uma amiga. Amiga daquelas que conversa te esculhambando e falando pornografias o tempo todo, mas era sincera. Margarete era uma pessoa excelente, sempre fiz questão de sua companhia desbocada, era uma morena de lábios largos, com um sinal do lado direito superior da boca, nariz afilado, olhos grandes com cílios delineados e uma cabeleira cacheada volumosa, dizem que Deus não dá asas a cobra, porém, para completar, a miserável ainda inventa de ter um corpão lindo.
Já eu, Kiara, tinha 26 anos, uma negra bem magrinha, sabe? Lábios cheios e delineados, olhos nem grandes nem pequenos, nariz levemente achatado e um cabelo estilo black power bem cuidado – adorava meu penteado – não tinha grande nada, nem peito e nem bunda, mainha dizia que eu era seca igual uma vara e reta igual uma tábua, que Deus a tenha. Naquele dia usava uma blusinha e uma saia rodada, coloquei grandes argolas vermelhas, uma fita da mesma cor no cabelo e saí para a “night”.
Os homens precisam entender que nem sempre uma mulher se arruma para namorar, nessa quinta—feira em especial saí pra dançar, me divertir e suar muito, sexo não era meu objetivo. Lá pelas 10h Margarete buzinou em frente à minha casa.
— Tô indo sua piriguete!
— Tá me achando com cara de taxista Kiara? Venha logo, se fosse, pelo menos o taxímetro estava contando!
— Nem me fala uma coisa dessas! Tô lisa igual gosma de quiabo! – tranquei a porta.
— Tua conta é uma desgraça mesmo, viu nega! Vive chorando miséria…
— Vamos logo que hoje eu só volto amanhã!
Saímos rindo e fofocando o caminho todo, fomos a uma boate massa no centro chamada “Hora da Balada”, o tema da noite era a disco e todos vieram caracterizados como na década de 70. Dançamos e bebemos por várias horas. Lá pelas três da madrugada, Margarete se agarrou com um “peguete” e a liberei para sair. Resolvi então buscar um táxi. Ao sair pela porta da boate, senti algo frio atrás de mim e uma voz rouca:
— Quieta! Faça o que eu mandar.
Segui obedientemente as instruções e entrei no beco descrito acima, imundo como era, fui tomada ali, em meio ao lixo, ao odor e aos ratos. Não senti muita coisa além de dor, e depois de um período sequer sentia mais dor, tudo era apenas uma questão de suportar o tempo necessário. Ele terminou e me largou ali, jogada, inerte, em estado de choque, fiquei imóvel por vários minutos até conseguir me mexer.
Me sentia imunda, conspurcada por alguém menor que o pior dos animais, aquilo não era um homem, era um porco. Não lembrava do seu rosto, nem da sua voz, mas aquele sentimento de perda terrível continuava aqui. Lembrava da violência e de como eu não significava nada naquele momento. Me toquei e senti o inimaginável: aquele porco deixou sua marca em mim. Não bastou degradar o meu significado e meu ser, tinha que me contaminar dessa forma.
Fui andando até uma delegacia da mulher, em frangalhos, cheia de hematomas e destruída por dentro. Prestei queixa sob o olhar duvidoso do policial, imaginei o que ele pensava de mim naquele momento, talvez me culpasse pela violência que sofri, é difícil para os homens entenderem as mulheres, sabe? Ainda mais se são negras e suburbanas. A delegada narrou que este era o quinto caso de estupro com o mesmo padrão de ação. Fiz então o exame de corpo de delito.
Voltei pra casa. Um policial mais gentil me ajudou e me deu carona de volta. Ainda me sentia suja, precisava de um banho. O DNA daquele desgraçado jazia dentro de mim e me senti horrível ao pensar nisso. Tomei um banho bem quente, usei a ducha dentro de mim, mas aquela sensação de roubo não saía da minha cabeça. Sentei em meu sofá e fiquei ali olhando para o nada. O sol já raiara, não iria ao trabalho naquele dia. Dormi.
No sonho eu lutava contra ele. aquele homem sem rosto tentava me pegar novamente, o aço frio encostado em minhas costas, era horrível. Gritava por ajuda e o policial que me atendeu olhava com desdém: “é culpa sua!”
Acordei suando frio. Lá fora já iniciava o crepúsculo, passei o dia dormindo no sofá. Levantei e preparei um suco verde, coloquei geleia em duas fatias de pão integral e comi. Lembrei do sonho e lembrei de tudo o que vivenciei. Chorei. Então o telefone tocou:
—Amiga, o que aconteceu? Depois de ontem tu sumiu, gata! – era Margarete.
— Vem aqui em casa.
— Vixe! Tô indo agora!
Demorou meia hora pra chegar, e quando chegou contei tudo a ela. O constrangimento, a vergonha e o ódio. Principalmente o ódio! A impotência me dominou naquele momento, e agora a frustração alimentava um ódio terrível contra aquele homem.
— Amiga… nem sei o que dizer. Sinto muito!
— Quero a morte dele, Marga!
— Você tem certeza disso?
— Claro que tenho! Aquele cara é asqueroso, não fará falta alguma pra mim nem pra ninguém.
— Eu tenho uma amiga… ela faz uns trabalhos, sabe?
— Como assim, criatura?
— Hummm, feitiçaria, menina… bruxaria.
— E isso lá funciona?
— Olha… eu já usei viu? E foi muito eficiente.
— Anda fazendo macumba?? Quem diria, viu!
— Eh… não foi bem nesse sentido… e não é macumba, é feitiçaria!
— Hum! Quero ir lá ver essa sua amiga.
Fomos até um subúrbio da cidade. O local era uma casa com um letreiro na frente que dizia assim: Franchesca te ajuda, traga seu problema e encontraremos solução.
— Isso não é instituição bancária, não é?
— Claro que não, menina!
Entramos por uma porta com sinos e chegamos a uma salinha de espera. Era tudo muito estranho lá dentro, havia meia luz, objetos com luzes coloridas e um cheiro de fumo. Também tinha uma cortina de sementes batendo umas contra as outras fazendo um barulho suave e contínuo. As paredes eram repletas de objetos místicos, cristais, estátuas bonitas e escabrosas também. Me senti deslocada lá dentro, como se não devesse estar lá, mas ainda assim permaneci, o ódio era forte em meu coração.
Após alguns minutos sentadas uma mulher de meia idade, passou segurando algo firmemente e lágrimas nos olhos.
—Entrem. – a voz era suave e melodiosa.
Andamos calmamente até a salinha após a cortina, uma vez lá pude perceber melhor o ambiente. A sala era exatamente o que eu esperaria daquele local. Era um cômodo de 5x5m aproximadamente, havia bancos de madeira nas laterais rentes à parede, o chão era de barro e ao lado de cada banco havia uma espécie de bandeja prateada, ao centro tocando na terra havia uma estrutura tubular aberta em cone com a parte mais larga voltada para cima, também era metálica e estava suja de algo vermelho. Em volta, descansavam ídolos de todo o tipo, vários eram blasfemos e me amedrontavam, outros pareciam oferecer a mão em ajuda, porém um deles me chamou mais atenção: havia uma estátua muito antiga, era uma criatura disforme e contorcida, possuía olhos espalhados pelo corpo e sua massa corpórea se assemelhava a uma água viva largada na areia, no centro dela estava uma boca cheia de dentes. Aquela estátua parecia ser muito mais antiga que as outras.
A feiticeira era o contrário do que eu esperava, jovem, na casa dos trinta anos, tinha cabelos curtos, era branca e usava um batom vermelho. Seus olhos eram profundos e quando me olhou pareciam avaliar minha alma, estava vestida com calça jeans e uma blusa preta colada ao corpo.

— O que tu queres? – Falou olhando para mim.
— Como você sabe…
— Quem é você? Sua aura está perturbada, veio aqui em busca de alívio? – Olhou em meus olhos e antes que pudesse responder falou – não, vingança.
— Eu… eu… – desabei a chorar naquele momento. A lembrança de tudo aquilo era dolorosa demais. Margarete falou por mim, explicou tudo o que aconteceu e como eu me sentia, então a feiticeira falou:
— Você quer o mau, e o mau é caro. O preço a pagar sempre será alto, igual ao pedido ou talvez até mais, você tem certeza do que deseja?
— Quero que ele pague!
— Meu amor… as pessoas pagam de um jeito ou de outro o que fazem, aquilo que ele lhe fez nada será diante do sofrimento que terá, você interferindo ou não.
— Não aceito isso! Não aceito que ele estupre mais ninguém, não aceito que ele saia livre depois do que me fez!
— Fale o que quer.
— Quero que ele morra. – a determinação que tinha naquele momento era inabalável.
— Algo será tirado de ti, aceita mesmo assim?
— Aceito!
— Tire sua roupa e deite aqui. – apontou.
Não me senti bem com aquela colocação, tirar a roupa ali era tudo, menos confortável. Com tudo o que havia passado recentemente ainda piorou a situação, porém quando lembrei do momento terrível pelo qual passei, o ódio tomou conta de mim e a hesitação se foi.
Começou os preparativos: me colocou deitada de costas na mesa e começou a riscar meu corpo com um líquido vermelho e viscoso, o cheiro era horrível. O ambiente parecia cintilar ao passo em que ela conduzia o ritual. Molhava dois dedos no tacho e esfregava aquele líquido na minha pele: em volta de meus seios, na virilha, nas minhas coxas, na testa e finalmente na minha barriga. Repetiu inúmeras vezes a mesma frase:
“Em sua casa em R’yleh o morto Ct’hulhu espera e sonha”
Então finalizou:
“Óh sacerdote do panteão negro! Antigo dos antigos! Dai a esta pobre alma um pedaço de tua essência, toma dela o que tu quiseres e dai aquilo que equivalha!”
Senti como uma onda percorrer meu corpo, me contorci e então o vi: um ser abominável e enorme, falava sem boca e seus tentáculos pendentes abaixo dos olhos se moviam como os do holandês voador; seus olhos eram profundos como o universo e a maldade era patente ali.
“Se queres com tanto afinco, aquilo que tomo de ti é tudo o que mais importa, ainda não sabes, mas já é meu! A partir de tu os antigos caminham, tua essência e um trilionésimo da minha andarão juntas. Está feito!”
Então acordei, e ambas olhavam fixamente para mim, Margarete assustada e a feiticeira ansiosa.
— Ele lhe agraciou então?
— Como assim?
— Você está viva! Quando se pede uma morte, se paga com uma vida, eu a avisei.
— Então quer dizer que ele gostou de mim?
O riso debochado dela quase me fez correr nua dali.
— Ele? Ele? Ele é a depravação e a destruição, menina.
— Como assim? Não entendi… agraciada como?
— Não sei, mas pela vida de seu estuprador ele tomou algo grande de você. Só você saberá e aí conte se quiser. Precisando de mim, estarei aqui.
— Onde posso me limpar?
Ela apontou as direções do banheiro. Fui até lá e me banhei, tirei aquele sangue do meu corpo, vendo a água vermelha escorrendo a voz daquela criatura horrenda soou em minha mente: Está feito.
Saí do banheiro e Margarete conversava baixinho com Franchesca, seu olhar em minha direção era de pura estupefação.
— O que é?
— Nada, menina – sorriu ela.
Voltamos para casa em silêncio. Por algum motivo parecia que falar era redundante. No meu íntimo, só conseguia lembrar do rosto horrendo da criatura e de sua “não voz” horripilante. Tomara que dê certo.
Uma noite foi tudo o que precisei para obter a resposta ao meu desejo. Naquele dia pela manhã, liguei a televisão no noticiário enquanto me arrumava para trabalhar. Num daqueles jornais sangrentos e sensacionalistas veio a notícia:
Um crime brutal, meu caro telespectador, mas ainda assim poderíamos dizer que errado? O estuprador famoso por render suas vítimas encapuzado e cometer o crime em becos da cidade foi finalmente encontrado. O que a polícia não esperava era o fato de esse cidadão estar pendurado em uma sacada, posicionado de braços abertos jazia seu corpo, retalhado por algo pontiagudo, provavelmente facas ou espetos, sua roupa rasgada e seu sangue ensopando a calçada! Sim meu, caro amigo, o senhor estuprador de nome Josenilson Soares Bezerra foi encontrado, encontrado MORTO! Ainda não sabemos quem foi o herói da vez, mas meus parabéns pela limpeza. Ainda resta a pergunta: quem matou o psicopata?
A euforia tomou conta de mim, era ele ali, naquela imagem, mesmo que desfocada eu reconheci as roupas, reconheci tudo. Uma sensação de alívio me dominou e finalmente respirei em paz. Aquele que me violentou já não violentaria mais ninguém. Ainda assim, andaria para sempre com medo na rua.
Apesar disso, os dias passaram e a rotina se aproximou daquilo que eu considerava normal, trabalho e casa, exceto por uma coisa: sentia um sono anormal; em todas as folgas cochilava; e após a terceira semana vieram os enjoos e os vômitos inexplicáveis. Numa dessas uma amiga do trabalho falou comigo:
— Tá gravida, porra? Vomitando feito égua velha!
Olhei de relance para ela de forma tão violenta que se calou e foi fazer alguma outra coisa. Aquilo o que havia dito, no entanto, ficou gravado em minha mente e a primeira coisa que fiz ao sair daquele local foi comprar um teste rápido.
Entrei em casa e corri até o banheiro, lá urinei na tirinha e fiquei tensa observando o resultado, a depender do que saísse ali mudaria minha vida pra sempre. Ainda assim, nunca estive preparada para o que encontrei: uma segunda tirinha, forte e firme. Eu estava grávida. Fiquei tonta e desmaiei.
Não sei por quanto tempo fiquei apagada, mas acordei deitada no quarto. Assustada, levantei de vez e andei a casa toda, não havia vivalma lá dentro. Parei então diante do espelho, minhas mamas estavam maiores, inchadas, minha barriga mais redonda, porém pequena ainda. Pensei no quão ridícula era aquela situação, eu, grávida, do homem que me estuprou e para qual fiz um feitiço (Matei).
Vou abortar…
NÃO!
Senti um baque por dentro, algo dentro de mim se moveu e uma cólica terrível se abateu sobre meu corpo. Passou em alguns segundos e entendi imediatamente o recado. Somente naquele momento percebi o que a entidade havia me roubado: não era minha vida, mas o feto que estava em mim, uma vida por outra, assim sugerira a feiticeira.
Passei o mês seguinte trancada em casa, paranoica. Larguei o emprego e acordei uma indenização da empresa, então o seguro desemprego me manteria juntamente com esse dinheiro, ao menos por um tempo.
Foi um período estranho. O horror e a dúvida que aquilo me causava eram terríveis, e algo estava sendo criado dentro de mim. Me olhava no espelho muitas vezes ao dia, e na minha opinião de leiga a barriga cresceu mais do que deveria nesse período. Em contrapartida, minha fome era terrível. Comecei a preferir carnes mal passadas e comidas cruas, coisa que sempre detestei. Primeiro deduzi que realmente os desejos de grávida eram verdadeiros, e por outro lado tive a sensação que gestava uma fera.
Comecei a ter pesadelos constantes: homens com cabeça de polvo vestiam grandes túnicas pretas e louvavam a um deus profano em volta de um altar. No altar havia sangue e um bebê chorando, eu então era levada até a criança e quando me aproximava um outro bebê pulava de meus braços e devorava o primeiro. Quando ele olhava para mim seu rosto era também de polvo. Uma boca horrenda e cheia de sangue mastigava sem parar, pequenos tentáculos ondulavam gotejando rubro líquido. Me olhava com grandes olhos negros nos quais via minha imagem aterrorizada refletida, era algo horrendo e incompreensível. Então acordava gritando, para perceber que não era verdadeiro.
Certo dia acordei com um sentimento de urgência. Era justamente o trigésimo dia do primeiro mês de gravidez, me encontrava em meados de maio. Levantei, fui até uma loja de eletrodomésticos e comprei um freezer. Não me pergunte o que me levou a fazer aquilo. No mesmo dia, pela tarde, a peça foi entregue e ligada lá em casa. Então saí e fui a um açougue, onde comprei muitos quilos de carne fresca, preenchendo então o aparelho. Não mexi mais ali por algum tempo.
Comecei a fazer um pré—natal, já passara o primeiro mês de gestação e fui verificar como estava o feto. Para tal tarefa convidei Margarete, ela nada sabia até ali, sobre o que estava acontecendo:
— Amiga, tudo bem?
— Tudo.
— Você sumiu! O que aconteceu? Você viu que deu certo?
— Eu vi, Marga… não respondi você por outra razão.
— Pelo quê, meu amor? Eu te ofendi?
— Não… eu tô grávida…
— GRÁVIDA? Quer dizer… grávida dele? DELE?
— Eu acho que sim…
— Como assim??? Por que tu não abortou? Vai gestar uma criança que veio disso?
— Eu pensei em fazer isso, sabe… mas desisti.
— Eu… você… ai, minha Nossa Senhora! Agora fiquei confusa! Fala logo aí…
— Senti uma dor horrível e algo me disse para não fazer!
— Isso está realmente estranho… mas a escolha é sua de toda forma.
— Você vem comigo agora pra ver o ultrassom ou não?
— Oxe amiga! Claro que vou!
Não precisamos esperar muito no consultório, chegamos e imediatamente a auxiliar nos chamou. Deitei na maca e aguardei que o médico colocasse o aparelho em contato com minha pele. Ele passou um gel gelado e em seguida começou a fazer a ultrassonografia. É importante falar aqui que minha barriga cresceu ainda mais, em nada minha gestação se assemelhava a um feto de pouco mais de um mês.
Na tela começaram a aparecer imagens, e para meu horror, o que vi ali me assombraria para sempre. Em quase tudo era normal, porém sua cabeça diferia do resto. Haviam tentáculos crescendo de seu queixo, eles se moviam juntamente com os braços do feto, aquilo me causou náusea e tontura na hora. Comecei a chorar, pois havia ali claramente uma má formação, ou ainda pior, a criança parecia advinda daquela entidade monstruosa.
— Calma. minha amiga! Está tudo bem com a criança, não vê? Ela é linda.
— Está tudo ocorrendo normalmente, você tem um feto de três meses bem desenvolvido aqui, não precisa se preocupar! – Me tranquilizava o médico. – Farei a impressão 3D da imagem para que você possa ver.
Ele começou a mostrar o feto 3D na tela, e eu vi a aberração se avolumar. Vi aquele feto maldito da forma que era, seus tentáculos se moviam dentro de mim como vermes, e a partir dali passei a sentir também seus movimentos, aquelas projeções minúsculas cutucando meu útero de dentro para fora. Enquanto divagava nessa sensação horrível e ridícula o papel da impressão repousou em meu colo, antes de olhá—lo, fitei Marga e o médico:
— Vocês não viram aquilo? Porque estão dizendo que meu bebê é normal?
— Vimos o quê, Kiara?
— Os tentáculos! Aquela cara estranha dele! É alguma doença, doutor?
— A senhorita poderia, por favor, observar a foto que lhe dei? Seu bebê é normal.
Olhei a imagem e fiquei perplexa, nada de errado havia com a criança, em nada ela se parecia com Davy Jones, ali estava um bebê completamente normal, em formação. Perturbada com aquilo perguntei:
— Vocês viram ele assim o tempo inteiro?
— Sim amiga! Ele estava assim o tempo inteiro, é lindo seu bebê, embora eu ache estranho o tempo que o médico falou! Você anda me escondendo alguma coisa viu, danada!
— Depois falamos… é pior do que pensa.
— Meninas, eu sei que a gravidez pode mudar a vida de uma pessoa profundamente, ainda mais quando é inesperada, porém não precisam encarar isso como o fim do mundo, sabe?
— Doutor, muito obrigado pela cordialidade, o senhor é muito educado. – falei me vestindo e em seguida indo até a porta.
Enquanto esperávamos a impressão do resultado cochichei para Margarete:
— Eu não transava há seis meses…
— COMO ASSIM? Primeiro, amiga, tá querendo virar freira é? Vai dar teia de aranha na periquita viu! Segundo, isso não é possível segundo o médico.
— Foi aquele negócio, Marga… tô te dizendo, mudou algo em mim, ele tomou o feto que eu nem sabia que existia.
— Credo… saravá… mas se foi isso mesmo, e ainda tenho dúvidas, lembre que você quis.
— Eu sei disso… não precisa me falar.
Nos dias que se seguiram, minha barriga crescia cada vez mais, e mais coisas estranhas mudavam em meu corpo. Comia carne como nunca, praticamente não ingeria outros alimentos, e um sintoma ainda mais estranho me dominava: passei a gostar da sensação dos tentáculos em minha barriga, aquilo que inicialmente me causava angústia e medo, agora se assemelhava a um afago carinhoso.
Dentro dos próximos dias desenvolvi um afeto profundo pelo bebê, e misteriosamente comecei também a receber uma quantia depositada em minha conta bancária. Era um depósito anônimo no valor de cinquenta mil reais, aquilo obviamente me deixou feliz e ao mesmo tempo estarrecida. Naquele tempo ainda não sabia, mas isso seria recorrente, essa mesma quantia seria depositada mensalmente.
No início do mês de Junho qualquer um que me visse diria que minha gestação estava a termo e nesse momento meus pesadelos pioravam. O bebê monstro agora vinha até meu colo quando estendia os braços para ele, que sujo de sangue, se aninhava em meu peito. Sua boca cefalópode abocanhava o bico do seio e sugava com força, sangue e leite faziam uma mistura rosada enquanto os homens de preto gritavam de júbilo e uma palavra reverberava sem parar: Ct’Hulhu! Ct’Hulhu!
Novamente suada e assustada, ali estava eu, no meio da noite. Levantei, fui até a janela e abri um pouco para tomar um ar, já estávamos pelos idos das 3h pelos menos. Do outro lado da rua vi um homem. Parado, ele olhava fixamente pra mim. Vestia sobretudo e usava um chapéu rodado. Primeiro fez um gesto de cumprimento e depois retirou o chapéu revelando uma cabeça cefalópode com tentáculos que se mexiam sem parar. Bati a janela assustada, tranquei—a e voltei ao quarto onde paralisada passei o resto da noite, na qual nada aconteceu.
No dia seguinte, fui até a polícia e relatei o caso ao policial em questão:
— Então tinha um homem vigiando a sua casa à noite?
— Sim, senhor.
— Como ele estava vestido?
— De sobretudo e chapéu!
— Ele então retirou o chapéu, correto?
— Sim, senhor!
— Como ele era?
— Havia… havia… eu não me lembro senhor.
— Venha comigo, o delegado irá falar com você, não sei porquê, mas ele se interessou em seu caso.
Entrei na sala e havia um homem de costas mexendo em um arquivário:
— Está dispensado, Manuel.
— Sim, senhor! – bateu continência e saiu.
— Sente—se, por favor.
— O senhor pode me ajudar, por favor?
— Posso sim, minha filha, o que está acontecendo?
Narrei toda a situação, mesmo ele estando de costas para mim procurando por algo aparentemente impossível naquele arquivo. Em algumas partes de minha narrativa sobre o homem parado do outro lado da rua ele parou como que escutando com mais atenção. Ao seu lado, havia um espelho, e por ele pude ver seu rosto concentrado. Era um homem de meia idade, com barba por fazer e olhos cansados.
— Tem havido uma série de crimes assim relatados ultimamente. Como era o criminoso?
— Ele era…. ele era…. não me lembro, senhor delegado! – fiquei com vergonha de concluir tal narrativa com tamanho absurdo quanto aquilo que havia visto.
— Era assim? – Virando—se para mim, retirou o chapéu, ali vi novamente a horrenda cabeça cefalópode, seu rosto não passava de um polvo horrendo e brilhoso, com uma pele obviamente viscosa e horrenda. Desmaiei.
Na tarde desse mesmo dia, despertei em casa, deitada em minha cama e levantei de sobressalto. Olhei cada cômodo e a casa estava vazia, ao olhar pela janela, no entanto, vi um carro com dois homens—cefalópodes dentro, horrorizada dei um passo para trás enquanto um deles acenava para mim.
No dia seis de junho, às duas horas da manhã, as dores começaram. Eram fortes e duradouras, eu sabia que aquilo estava errado, que aquela gravidez profana havia adiantado seu ciclo, mas também entendi que entrei em trabalho de parto. Fui até o hospital mais próximo, sozinha e a pé. Não quis chamar Margarete. Ninguém me parou no caminho, ninguém se aproximou de mim, mas notei vigilância. Havia homens de sobretudo e chapéu por toda a parte e nenhuma pessoa hostil se aproximou de mim. Estranhamente até a casa de um traficante conhecido do bairro estava silenciosa.
No hospital fui atendida prontamente por uma enfermeira, o parto seria pelo SUS. Um médico veio me avaliar, fez o toque e pediu que uma moça me acompanhasse. Entrei em transe e não consegui mais raciocinar. A enfermeira que veio tinha cara de polvo, olhos vermelhos e uma cabeça cinza—esverdeada pintada com manchas pretas. Fiquei sentada analisando a imagem, apática como estava, não me assustei, nem gritei, nem resisti a ser atendida. Logo, toda a equipe médica que me acompanhava possuía a mesma característica. Reparei que os reflexos das cabeças eram normais: no espelho da sala onde estava eu via apenas várias pessoas triviais comigo.
Um médico com cabeça de polvo conduziria o parto. Conferiu a altura do bebê e a evolução da dilatação. Uma sensação inexplicável de calma se apoderou de mim, ali entre aquelas criaturas estava segura. A dor aumentava, doía tanto que achei que iria morrer. Não era normal e nem fisiológico, era uma dor de ferimento mesmo, não como já havia lido e ouvido falar do parto. Quando pensei que a dor não seria mais suportável o bebê saiu, o médico—polvo colocou ele em meus braços e o aninhei, no meu colo estava aquela criança, um corpo de bebê gordo e rechonchudo e a cabeça de polvo me olhando fixamente.
Todos ficaram ali parados, me olhando, e quando tudo terminou minha placenta saiu. Aqueles seres então a devoraram, repartiram entre si da forma como estava, crua e ensanguentada. Uma ânsia poderosa de vômito me dominou e vomitei ao lado da maca. Ao meu ouvido o médico falou:
“Salve uma mãe da prole de Ct’hulhu!”


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