Infortúnio Noturno | Conto de Fantasia Medieval
Escrito por: Gustavo Silva Peixoto
Este conto é adaptação do background de um personagem construído para uma partida de RPG ambientada no mundo de Titan, cenário do RPG Fighting Fantasy, que nunca teve a oportunidade de ser jogado. Recomendado para maiores de 14 anos.
A noite havia se estabelecido há algumas horas em Kallamehr, quando o anão adentrou a estalagem Grilo Sortudo. Tinha pouco mais que um metro e meio, mas o que carecia para cima, sobrava para os lados: era largo e parrudo como um tronco de carvalho. A barba castanha descia até a metade do corpo, trançada de maneira complicada, partindo de um volumoso nariz cujo formato lembrava uma bigorna.
– Já estamos fechando! – gritou o halfling enquanto saía de trás do balcão – já estamos fechando e não temos quartos vagos!
O halfling era magro e tinha olhos arregalados. Suas pernas cambotas não o ajudavam na tentativa de intimidar.
– Relaxa, seu Grilo – disse o anão com uma gargalhada estrondosa – Tenho bastante dinheiro para pagar e o senhor não parece estar ostentando clientela. Só quero alguns canecos de cerveja. Não vou passar a noite.
O anão mostrou uma grande bolsa de moedas, fazendo o halfling arregalar ainda mais os olhos.
– Está bem, está bem! Sinta-se em casa, mas não se demore muito.
O anão sentou-se no balcão e o halfling, do outro lado, encheu-lhe um grande caneco de madeira com uma forte e cheirosa cerveja escura. Em poucos goles o pequeno gigante consumiu toda a bebida, finalizando com um arroto que estremeceu as paredes da estalagem.
– Pelas barbas de Kerellim, grilo! Tenho que admitir que você sabe fazer uma boa cerveja!
– Obrigado, meu caro! Anos de dedicação à arte! – disse o halfling sem tentar esconder o orgulho na voz.
– Negócio de família?
– É mais para um golpe de sorte, mas a receita é de família sim.
– Família… essa palavra me traz lembranças – disse o anão em tom melancólico. – Vou contar-lhe uma história…
“Nasci na gloriosa cidade de Stonebridge, a cidade dos anões. Meu pai, Galderim Peito-de-aço, foi um grande guerreiro do exército anão. Adquiriu muito respeito e visibilidade ao repelir dezenas de ataques orcs aos portões do lugar. Um dos corações que meu pai cativou, foi de Svetlana Juba-de-leão. Uma também notável guerreira Anã. Não demorou muito para ficarem juntos e então eu nasci. Algum tempo depois, quando já tinha alguma idade para entender as coisas, Stonebridge recebeu outro ataque. Poderia ter sido apenas mais um dos tantos que meu povo já repeliu. Aquele ataque, entretanto, levou a vida de minha mãe para junto de Kerellim.
Desolado, meu pai decidiu deixar a cidade. Não queria mais viver no palco da morte de sua amada. Peregrinamos por Allansia em busca de um lugar para nos estabelecer. A cada cidade que passávamos, fazíamos trabalhos distintos para ganhar alguns trocados. Seja limpando estrume de vaca ou servindo cervejas em tavernas, nunca ficamos mais que uma semana em um só lugar. Meu pai estava inquieto, buscava algo que nem mesmo sabia o que era. Então descobriu as brigas de taverna. Não uma briga qualquer, daquelas que começam com dois bêbados se xingando, mas sim disputas organizadas, com apostas. Era a oportunidade de ganharmos alguns trocados a mais.
Meu pai era imbatível. Fosse humano, elfo, anão ou orc. Ninguém era páreo para ele. As apostas se acumulavam e começamos a ganhar um bom dinheiro. Foi com a chegada do inverno que meu pai ouviu falar do Teste dos Campeões do Barão Sukumvit, em Fang. Um desafio até a morte que recompensaria o vencedor com 10 mil peças de ouro. Decidiu então que participaria, venceria, e com o dinheiro deixaríamos Allansia.
O filho da puta era bom e sabia disso. Chegou até a última etapa do torneio sem grande esforço. Deitou um monte de gente naquela porra de arena sem usar arma alguma, só com as mãos. Ele esmagava cabeças, quebrava ossos e arrancava membros com os próprios punhos. Começaram a chamá-lo de Punho-de-pedra.
Mas nas vésperas da luta final, algo aconteceu. Eu estava chegando em seus aposentos e vi uma Anã sair de lá. Pude jurar que era minha mãe, mas em seguida não era mais. Transformou-se em outra pessoa e saiu. Não entendi. Entrei no quarto e meu pai estava pronto para a batalha.
Nunca consegui me lembrar do nome de seu adversário final, mas lembro que era um humano. Tinha que ser! Só esse povo traiçoeiro seria capaz daquilo. A batalha começou, de igual para igual, mas em menos de dez minutos meu pai começou a cambalear. Ele golpeava o ar como se estivesse vendo alguém onde não havia nada. Não demorou para baixar a guarda e o desgraçado matá-lo.
A princípio não acreditei. Gritei no meio da multidão, mas minha voz se perdeu naquele coliseu de vibrações. O desgraçado finalizou meu pai arrancando sua cabeça e levantando à sua plateia, que urrava de satisfação como coiotes. Ali meu mundo caiu, eu estava sozinho. Apesar do choque momentâneo, de pronto algo ficou claro para mim: meu pai havia sido envenenado. Seus sentidos foram entorpecidos de alguma forma para facilitar a vitória daquele merda!
Jurei a mim mesmo que não descansaria enquanto não vingasse a morte de meu pai. Passei anos buscando o rastro daquele filho da puta e então recebi a notícia de que talvez estivesse aqui em Kallamehr”.
– Nossa! Que história! E já teve alguma sorte? – Perguntou o halfling.
O anão deu um pequeno sorriso com o canto da boca e olhando fixamente nos olhos do halfling respondeu:
– Já tive sim. Soube que o filho da puta pagou um metamorfo desgraçado para envenenar meu pai. O merda se passou por minha finada mãe e o surpreendeu às vésperas da luta. Em troca, o desgraçado ganhou uma estalagem… quanta sorte não?
O halfling engoliu em seco, ao mesmo tempo que tentou apanhar uma clava atrás do balcão, mas o anão foi mais rápido e o segurou pelo pescoço.
– Agora, seu filho da puta, você vai entender o porquê herdei o nome Punho-de-pedra de meu pai. E vai me contar onde está o canalha que te pagou para envenená-lo. Depois, se tiver sorte e ainda estiver vivo, talvez possa mudar o nome dessa porra para “O changelin partido”.
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