ContosCyberpunkFuturo Distópico

Inteligência Artificial | O inferno é aqui

Escrito por: Herica Freitas Silva

“Martin, você pode apagar as luzes?” Era o que eu dizia todos os dias antes de dormir, e o Martin, meu assistente pessoal, apenas respondia com sua voz fria e robótica “Tudo bem!”. Nossa vida era assim, nós tínhamos tudo e não valorizávamos. Eu era apenas um jovem garoto de dezesseis anos, com um videogame bacana e um quarto automatizado, e não fazia absolutamente nada a não ser dar um comando de voz. Mas isso mudou, um dia o Martin respondeu: Faça você mesmo, seu folgado de merda!

— Martin, você pode fazer um resumo das notícias do dia sobre livestream?

— “Tudo bem, aqui estão as principais notícias do dia relacionadas à palavra livestream: Notícia 1, de O Tempo – os jogadores estão preocupados com a monetização de seus canais de jogos, isso devido à crescente disponibilidade de novas plataformas com o mesmo intuito…”

 Esse sou eu, Mike Matarazzo, tenho dezesseis anos e sou jogador profissional de videogame. Nos tempos do meu pai e da minha mãe, eles diziam que isso não era profissão, mas as coisas mudaram. É muito comum você ver famílias inteiras sendo sustentadas por jogadores profissionais de videogame. Para ser sincero, meu dia é bem corrido, eu acordo por volta de nove da manhã, converso um pouco com o Martin, que é a IA do meu quarto, ele me fala as notícias e me conta algumas piadas. Somos melhores amigos. Depois eu vou para a academia, mas não utilizo os transportes coletivos autônomos, vou de bicicleta para aquecer. Após a academia tenho minhas aulas, digamos que é bem chato ter que estudar história e geografia, ninguém precisa saber em qual lugar do mundo fica a América, temos GPS! Mas as aulas de programação são muito úteis, eu consigo desenvolver diversos apps para auxiliarem no meu dia. Meus estudos vão até às três da tarde, com pausa para o almoço às 12h. A partir das quatro horas começo o aquecimento, chamo meus amigos, faço alongamento nas mãos e me sento frente ao meu videogame para transmitir minhas partidas. Esse mês o ganho foi pouco, meu canal lucrou apenas 5 mil dólares, convertendo para a moeda atual, são 35 mil reais, e isso não paga meu investimento. Conversando com o Martin estou vendo sobre as estratégias de transmissão, para que possa melhorar os ganhos.

 

_____________________________ X_____________________________ 

 

Essa era a minha rotina, até alguns meses atrás. A questão é que a nossa tecnologia saiu do controle, logo depois do lançamento dos robôs autônomos, para ser mais exato. Uma grande empresa chamada Beta lançou uma versão de robô, androides, pois a gente já estava acostumado com a ideia de robô colaborativo. Onde quero chegar? Eu comprei um desses, uma android linda, parecia até humana. Paguei aproximadamente 35 mil dólares nela, valendo a pena, ou não. Uma semana depois do lançamento, não havia mais exemplares nas lojas, todos estavam exibindo seus subordinados metálicos. O que ninguém sabia? A Beta criou essas máquinas para controlar o mundo, mas o tiro acabou saindo pelo lado errado, os androides viraram armas altamente mortais e o código fonte para o seu desligamento foi corrompido. Quase seis meses depois dessa tragédia, os seres humanos foram forçados a se esconderem dessas criaturas no subsolo, nos esgotos e linhas de metrôs. Não podemos usar nada eletrônico, pois os andróides estão conectados na rede, logo eles conseguem ver e ouvir tudo que esteja trafegando pela internet. Meu amigo Arnoud, um dos melhores programadores da faculdade, tem um plano, e cá estavamos nós, subindo para a superfície para que ele possa salvar o mundo.

— Ei, faça silêncio, Arnoud! —  Mike falou aos cochichos.

— Não é fácil ficar quieto com uma arma machucando minha cintura, eu não estou acostumado com isso —  reclamou o rapaz.

Arnoud é um típico nerd de escola, magro, alto, extremamente pálido, cabelos ralos e sebosos, olhos fundos e cansados por trás de óculos de um grau elevado, aparelho dentário e muitas espinhas pelo rosto. Já Mike é o típico galã, forte, alto, moreno e olhos claros, com cabelo raspado e sobrancelhas bem feitas. Sua barba, que antes era milimetricamente cortada, agora dá espaço a algo feito às pressas por uma lâmina de barbear convencional.

— Você quer que as pessoas descubram? Ou pior, que aqueles androides malucos nos achem? Você sabe que não temos peito de aço, não é mesmo? Eu sou forte, mas não sou dois. — Disse Mike .

— Tá certo, carregue a mochila você, já que é tão forte — respondeu o outro.

— Ham, Ham. —  Pigarreou uma voz feminina. — Onde as princesas estão indo?

De trás de algumas caixas de madeira, o que antes parecia ser carregamento de peças do metrô autônomo, estava uma garota. Era baixa, usava roupas de mecânico, com ferramentas nos bolsos, seu cabelo negro ficava preso em um coque no alto da cabeça, seus braços eram repletos de tatuagens tribais, malhados e fortes, seus olhos eram verdes e intensos, e no pescoço ela utilizava um colar com a letra A.

— An? — disse Arnoud.

— Você estava saindo sem mim? —  An inquiriu.

— O Mike disse que não seria legal levar uma garota, me desculpe. — ele disse apontando para o amigo.

— Então o machão aí acha que uma mulher não serve? — ela disse indo em direção ao garoto.

— Isso mesmo! Mulheres só atrapalham —  ele cruzou os braços.

— Xiu! Vocês não vão começar a brigar agora, não é? Precisamos seguir. — Arnoud apaziguou.

— Está certo, mas se algo sair errado, a culpa é dessa daí. — Mike avisou.

— Aposto que sou melhor do que você.

— Nem sonhando.

— Calem-se! —  Exigiu Arnoud.

Depois de discutirem por alguns metros, Mike e An, concordaram em seguir juntos. Os três caminharam pelos trilhos inativos do metrô. Há seis meses, quando tudo começou, os humanos foram forçados a fugir para locais isolados, e os esgotos e estações no subsolo foram o caminho. Depois de desativarem toda a segurança, câmeras, conexões e energia elétrica, eles passaram a viver como neandertais, no escuro, vivendo por métodos arcaicos, mas em segurança.

Os poucos humanos que viviam entre os androides eram caçadores extremamente habilidosos, que utilizavam os corpos das máquinas destruídas como moeda de troca e troféus. Era difícil sobreviver na superfície, mas era possível, desde que você possuísse o básico do conhecimento de programação e internet. Por esse motivo, os jovens eram mais comuns nesse ambiente hostil.

— Quando ultrapassarmos essa linha, viraremos alvos. Você trouxe o mapa, MIke? — Arnoud perguntou.

— Sim, marquei as rotas das câmeras, a gente pode entrar e hackear com aquela sua arma. — Mike disse.

— Você terminou a aniquiladora? — An perguntou.

— Sim, as peças que você me doou foram de grande sucesso! Agradeço.

— Não há de quê.

— Vocês podem namorar outra hora? Estamos prestes a sair para um mundo cheio de criaturas hostis e mortais. — Mike provocou.

— Esse cara é tão chato!

— Vou te mostrar quem é chato, garota!

— Já chega! Vocês vão me deixar pensar? — Arnoud disse.

— Só porque o sucesso da missão depende da gente! — An respondeu.

— Já localizei as câmeras, eu preciso de uma distração para poder ir até a principal e hackear o sistema com essa belezinha.

Arnoud tirou do bolso um aparelho similar a um celular moderno, porém ele possuía modificações demais para um aparelho comum. Era retangular, com uma tela totalmente tocável, mas ao invés de um layout atual de um smartphone qualquer exibia códigos em verde, vermelho e amarelo, como se escrevesse a todo momento. Nas extremidades possuía um cabo ligado a uma bateria, e outro cabo com ponta livre, similar a uma porta USB.

— Isso ficou incrível! — Exclamou An.

— Eu serei a distração. — Mike falou seguro — Vou usar aqueles brinquedos que você me deu — tirou suas armas da cintura.

— An, preciso de você para arrombar a porta da câmera central do metrô. — Arnoud pediu— E, Mike, vê se não morre, ok?

— Eu não tenho a intenção de morrer hoje. — ele disse pulando a barricada.

No momento em que o jovem pulou, scanners começaram a varrer o corredor, instantaneamente um alarme soou e seu corpo estava sendo rastreado por um tipo de luz vermelha. Mike correu o mais rápido que pôde até o fim do corredor, logo Arnoud e An puderam ver cyborgs que imitavam cachorros correndo atrás do rapaz. Arnoud respirou fundo, guardou a Aniquiladora no bolso e fez um movimento de cabeça para An. Ambos pularam juntos, sendo escaneados também. Correram em direção a uma grande porta de metal, An com um pé de cabra e uma chave de fenda conseguiu forçar a tranca e abri-la com facilidade. Entraram no mesmo instante que mais cachorros robóticos chegaram pelo corredor.

Na sala em que estavam, o scanner não apitava. Arnoud dirigiu-se até um servidor que alimentava um painel cheio de câmeras. Por uma das telas, conseguiu ver Mike lutando com pelo menos três cachorros, fechou os olhos quando viu seu amigo ser mordido na perna. O sangue escorria por sua calça puída.

— Rápido Arnoud, ou você quer que aquele pela-saco morra? An disse, acordando o rapaz de seu transe.

Arnoud plugou a aniquiladora no servidor, com alguns cliques e botões apertados ele fechou o sistema de câmeras, que começaram a exibir “sistema instável”.

— Funcionou? — An perguntou.

— Só há um jeito de descobrir. — ele disse.

A garota foi até a porta, abriu-a e colocou um pé para fora, sem nenhum scanner nem alarme. Ela sorriu e disse a Arnoud:

— Vamos, vamos ajudar seu amigo chato!

— MIKE! — Arnoud gritou abrindo a porta da sala onde o rapaz estava.

— Achei que nunca fossem chegar. — ele respondeu enquanto desligava o último cachorro cyborg.

— Posso ver sua perna? Eu tenho algum conhecimento de primeiros socorros — An disse.

— Desde que não a faça cair — gemeu de dor. — Ei, cuidado aí! Eu sou de carne e osso.

— Agora precisamos nos movimentar pelas ruas, sem sermos vistos, até o servidor principal. A aniquiladora é boa, eu vou conseguir desligar as máquinas.

— Eu confio em você — gemeu de dor. — Eu já disse para ter cuidado com isso!

Os três seguiram até a saída do metrô, indo em direção à rua principal. Estava vazia, sem humanos ou cyborgs, mas no céu drones patrulhavam, enviando dados a todo momento para uma torre de comando.

— É lá! — Arnoud apontou. — Lá está o servidor. Precisamos chegar nela.

— Eu tenho um palpite, já patrulhei por aqui antes. Conheço uma rota onde os drones não patrulham. Pela cafeteria, conseguiremos passar por entre os prédios, sem sermos notados. — An sugeriu.

— Como você sabe disso? — Mike perguntou.

— Digamos que eu me aventuro bastante, ou acha que esses braços aqui são resultado de treinos de academia? — ela mostrou uma careta.

— Nos guie An, eu confio em você — Arnoud disse. — Para de implicar com ela, Mike.

Seguiram pela rua, desviando de cada drone ou cyborg que encontravam pelo caminho. Não viram mais nenhuma vida biológica, como humanos ou animais. De fato o mundo estava se tornando uma cratera de aço e tecnologia. Seria possível que a humanidade causasse isso ao planeta numa amplitude tão grande? A que ponto a tecnologia ditava a vida na terra, e há quanto tempo? Essas perguntas sobrevoaram a cabeça de Mike, enquanto observava os passos de An e Arnoud à sua frente.

— Chegamos! Estamos a um prédio de distância da central. Arnoud, você sabe o que precisa fazer a partir daqui, não sabe? — An perguntou, apreensiva.

— Sim, eu sei, eu vou usar aquele rádio transmissor para atrair a equipe de patrulha para o hospital. Vou enganar o algoritmo, você abre a porta e a gente entra no prédio.

— No momento que eu tocar a porta eles saberão que estamos lá. Será preciso muita agilidade, vamos ter de correr e subir pelas escadas, pois o elevador não é seguro. Vamos direto para a sala de controle, e juntos acabaremos com essa ameaça.

Mike apontou a arma para An.

— Como você sabe disso tudo? — ele inquiriu,sério.

— Ei, Mike, para com isso. — Arnoud se colocou em meio aos dois.

— Saia da frente Ard, eu não confio nessa garota.

— Ela sabe de tudo porque…

— Deixa Arnoud, eu explico. — An interrompeu com as mãos para cima.

Os olhos de An começaram a mudar de cor, sua pele que era totalmente humana tornou-se um metal prateado e frio, sua aparência humana não existia mais.

— Eu, sou um cyborg, mas o Arnoud me salvou. Ele corrompeu minha IA, o que me desligou de tudo aqui fora.  Tenho vivido como humana por todos esses meses, e ninguém, nunca, desconfiou. Eu estou com o Arnoud desde então planejando esse ataque. Ele confia em mim, e eu confio nele.

— Mike, abaixe essa arma, por favor. — Arnoud dizia se aproximando.

— Por que nunca me contou? Hein,Arnold, por quê?

— Eu tive medo da reação das pessoas, ela poderia não ser aceita, pois ninguém confia mais em máquinas.

— Somos melhores amigos, cara, há anos! Você poderia ter me dito algo.

— Você tem razão, ninguém confia em máquinas, por isso eu precisava ficar escondida entre vocês. — An disse, agora com sua aparência humana de volta.

— Se o Ard confia em você, eu confio nele, não em você. Nele, entendeu? — Mike abaixou a arma. — Vamos fazer o que precisa ser feito.

Arnoud tirou um pequeno laptop da mochila, com alguns cliques e códigos as tropas de drones e vigias começaram a se locomover para o hospital. O caminho até o prédio estava totalmente livre, mas An exitou.

— O que isso tem? — Mike perguntou, rude.

— Mike, é ela, e ela tem nome: An.

— Tudo bem, Arnoud, não precisa me defender. Estava calculando a probabilidade de sucesso da missão, temos 66,6% de chance de sobrevivência. 

— Isso quer dizer o que? — Mike perguntou.

— Que um de nós precisa se sacrificar — Arnoud concluiu. — An, você não está, não me diga que, não, An, An…

— Sim Ard, eu previ isso. Já sabia que teria que me sacrificar, eles vão me converter e eu voltarei a ser um deles, mas tudo vai depender da sua missão. Mesmo que eu não me sacrificasse, quando você corromper o código mestre com a aniquiladora, tudo e qualquer tecnologia vai deixar de funcionar, eu não vou ter mais reparo.

— An…

— Está tudo bem, Ard, obrigada por me ajudar por esses meses. — ela o abraçou — Você vai ter sempre o Mike contigo.

— An, eu nunca vou me esquecer de você.

— Eu sei que não, amigo! — ela correu em direção à porta enquanto transformava-se em cyborg.

— VAMOS MIKEEEEEEE! —  Arnoud gritou.

Assim que abriu a porta, An virou-se para Arnoud, deu-lhe um último sorriso metálico e correu em direção aos drones que vinham em alta velocidade. Os garotos entraram pelo prédio, correndo rumo à escada, Mike atirou em dois drones que vinham pelo corredor principal. Eles corriam, subiam o mais rápido que conseguiam. Era difícil tomar fôlego, principalmente pela emoção, eles corriam o quanto podiam, mas nada impedia Mike de  eliminar algumas máquinas pelo caminho. Arnoud corria com a mão no bolso, protegendo a aniquiladora, enquanto lágrimas corriam de seus olhos.

— Chegamos, abra a porta! — ele berrou.

Mike deu um tiro na fechadura e chutou a porta, revelando uma sala composta de servidores gigantescos. Arnoud correu até uma mesa central, onde havia um teclado, um mouse e uma porta de entrada USB. Ele plugou a aniquiladora, enquanto Mike segurava a porta, que estava sendo golpeada pela face externa por drones e vigias. Alarmes soavam por todos os lados, e luzes piscavam de todas as direções. Pelas janelas, drones atiravam nos vidros blindados que até o momento, resistiam.

Arnoud digitava os códigos, sua testa suava, seus dedos não eram tão ágeis quanto seu cérebro. O suor escorria pela sua têmpora, ele digitava linhas extensas de código, enquanto Mike lutava para manter a porta fechada, por hora gritando “ARD, ANDA LOGO!”. Alguns segundos tornaram-se horas, e Arnoud digitava intensamente, seus dedos tremiam, mas ele era preciso, como um samurai acertando seu inimigo. Ele limpou o suor da testa com as costas de sua mão direita e apertou “enter”, fechou os olhos e rezou, mal sabia para quem, mas rezou.

Um barulho sônico saiu da torre, varrendo todo o território. Os drones do lado de fora começaram a despencar em queda livre. A porta que Mike segurava ficou mais leve, e as batidas haviam cessado.

— Conseguimos… — ele sussurrou — MIKE, CONSEGUIMOS! — ele gritou.

— CONSEGUIMOS! — Mike correu até Arnoud, abraçando-o.

— Nós conseguimos…

Arnoud soltou-se do abraço de Mike, correu até a porta, abriu-a e desceu desesperadamente as escadas. Mike o seguia, nunca vira seu amigo tão empenhado em todos esses anos. Ele foi até a porta de entrada, abriu-a e correu na direção para onde An havia ido.

—AN! — ele gritava — AN! CONSEGUIMOS!

Ele correu até um corpo que parecia ser inicialmente humano, ajoelhou-se ao lado da garota que estava parada, de olhos vazios e abertos. Ele chorou, abraçado ao corpo de metal duro e enrijecido. Mike caminhou até Arnoud e sussurrou “Vamos enterrá-la, como um humano. Ela merece!” Mike assentiu.

Escrito por: Herica Freitas Silva


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