ContosVelho Oeste

O conto de Brody Hampton

Escrito por: Nilson Doria

BadLands é um cenário de faroeste que mescla elementos históricos e sobrenaturais no qual grupos de aventureiros vivem suas histórias. Brody é um desses aventureiros. Este é o conto de Brody Hampton! Conheça suas andanças antes de reunir-se com seus companheiros Tony Chapéu de Cone e Lone Phil. Neste primeiro momento de sua jornada, Brody transita entre seu passado como Texas Ranger e seu presente como caça-diabos. Supersticioso, Brody sempre acreditou no sobrenatural, mas foi apenas durante seu serviço como soldado na Guerra Civil Americana, que ele teve seu primeiro contato com eventos e criaturas que desafiam qualquer explicação racional. Estes acontecimentos mudam completamente os rumos do seu futuro, além de fazê-lo questionar o passado de sua família. Após encarar a morte de perto, os espíritos aconselham Brody a buscar companheiros de jornada, o caçador-de-alma-partida e o homem-de-um-chifre-só.

O conto de Brody Hampton

O capitão e a bruxa

Setembro 1863, Chickamauga, Georgia

Sob as ordens do Tenente Coronel Longstreet, as tropas marchavam ao largo do rio Tennessee. Foram despachados como reforços para auxiliar o General Bragg a defender a margem ocupada pelas forças confederadas. As forças da União, por sua vez, eram comandadas pelo General Rosencrans, elas não deveriam atravessar o rio. Era essa a missão. Todavia, não seria tarefa fácil, o exército inimigo investia ferozmente, armado com os devastadores e recém-criados rifles de repetição desenvolvidos pelas indústrias Spencer. Enquanto as tropas marchavam um praça, ex-Texas Rager, e um capitão proseavam.

– Oba! O senhor sabe me dizer se a gente vai ter que cruzar esse rio aí?

– Se for necessário, sim.

– Hm…

– O que foi? Não vai me dizer que um diablo tem medo de água?

– Medo?! Ora, que medo o quê! É que eu sou que nem uma pedra quando me jogam n’água.

– Mas de que você está falando?

– Foi uma maldição que lançaram no meu tataravô ainda lá na Inglaterra.

– Maldição?

– Uma bruxa irlandesa dos cabelos vermelhos como o fogo do inferno. Ela amaldiçoou o velho quando ainda era novo. Ele tava dando uma espiadela nela se banhando em uma cachoeira. Diziam que era formosa por demais. Quando ela viu que ele pretendia mais que espiar, rogou umas pragas numa língua estranha. Meu tataravô entrou na água para tentar parar aquela reza, mas já era tarde. Afundou que nem pedra no fundo do lago. Por sorte, a gritaria chamou a atenção de um caçador que estava de passagem e acudiu. O mateiro teve que amarrar uma corda no cavalo para conseguir puxar meu avô de volta de tão pesado que ficou dentro d’água. De lá para cá todos os homens da família herdaram isso.

– Então é pior ainda, um diablo com medo de bruxa! Hahahahaha!

– Olha, o senhor para com essa coisa de me chamar de diablo! Eu sou um Ranger, Ran-ger, R-a-n-g-e-r. Não chama pelo coisa-ruim que ele dá as caras. E digo mais, se quer acreditar, acredite, se não quer, não acredite. Mas se eu cair nessa água… aí vai ser problema.

– Não sou eu quem chama os Rangers de diablos, são os mexicanos, e boa parte do povo também. Para mim tanto faz. E tanto faz se a maldição existe ou não existe. Se o coronel mandar a gente atravessar o rio, é o que vamos fazer.

– Isso é o que o senhor diz. Mas eu não vim aqui para morrer de afogamento. Vim para matar ou morrer de bala.

– É o que todos viemos fazer aqui. Aliás, filho, qual o seu nome?

– Hampton. Brody Hampton, capitão.

Ao alvorecer do dia seguinte seguiu-se uma batalha sangrenta. A companhia de Rosencrans estava manobrando próximo a Ponte de Alexander, quando foram surpreendidos com a chegada das tropas de Longstreet surgindo por detrás de uma colina. Desorganizadas durante a manobra, um terço das tropas da União pereceu, incluindo seu comandante. As baixas do lado dos confederados não foram poucas, mas em muito menor número. Dentre elas o capitão que conversara com Brody. Morreu com uma rajada de balas no peito, vociferando: “Por mil diabos!”.

O restante das tropas da União recuou. Os vitoriosos montaram acampamento ali mesmo. Quase invisível, o Tennessee corria carmesim sob a bruma artificial que rescendia pólvora queimada. Os vitoriosos pilharam alguns dos imponentes rifles deixados pelos inimigos. Os corpos foram deixados ali mesmo. Brody foi intrépido na peleja, mas saiu ileso, agradecendo a Deus por ter colocado a ponte no meio do campo de batalha. Daí algumas horas, após o ocaso, descobriu que a providência divina não estava em seus dias mais generosos.

Mil diabos

O tumulto da batalha deu lugar à calmaria. A noite estava quieta. A lua nova garantia a escuridão que acobertava os horrores espalhados no solo, aplacando um pouco o cenário de devastação. Não fossem o calor, que acelerava a deterioração dos corpos, e o aroma pútrido que deles exalava, atraindo enxames de moscas e algumas aves carniceiras, seria possível ignorar o ambiente desolado.

Apesar do pouco contato e das troças, Brody afeiçoara-se ao capitão falecido. Tentou incluí-lo em suas orações quando se recolheu, mas não sabia seu nome. Antes de dormir pensou em rezar para o capitão-dos-mil-diabos, mas achou que Deus não gostaria dessa expressão em uma prece. Por que o capitão tinha que chamar mil diabos antes de morrer?! Assim ficava difícil interceder pela sua alma. Além disso, dava azar para os que sobreviveram. Ainda assim, improvisou:

– Oba, Deus! Tudo bem? Assim na Terra como no Céu, viu? Cuida das almas que foram levadas hoje. Incluindo aquele capitão boca-suja. Ele não era má pessoa, não. Só não era muito bão com as palavras. Mas isso eu também não sou. Olha, com certeza ele não quis dizer aquilo antes de morrer. Não faz o justo pagar pelo pecador, não, hein? Por favor. E livrai-nos do mal. Amém! 

Finda a oração, adormeceu. A paz, no entanto, durou pouco. Urros de dor lancinaram a noite espessa. O Ranger foi um dos primeiros a despertar.

Saindo da tenda com o rifle em mãos, Brody procurou pela fonte dos gritos. Eles vinham de um bosque, um pequeno arvoredo, que margeava o acampamento. Conforme caminhava até lá, a algazarra se intensificava e podia ouvir atrás de si outros companheiros aproximando-se cautelosamente. Sons de disparos começaram a ecoar da mesma origem que os urros. O lampejo de um tiro de mosquete revelou uma visão assustadora.

– Mas que visagem é essa?! Nunca vi um diabo assim! Isso só pode ser coisa do capiroto!

A verdade é que não se tratava de um diabo, mas de uma multidão deles. Em meio à treva não conseguiu divisar quantos. Eram umas coisinhas miúdas e rechonchudas de pele muito, muito branca, quase transparente, umas barbixas tão brancas quanto a pele, e uns olhos enormes, que brilhavam pálidos e azuis como a lua cheia alta no céu. Eles já haviam vencido as sentinelas e investiram contra as tendas com machados afiados. Avançavam na escuridão como se ela lhes fosse indiferente. Muitos dos companheiros do Ranger perderam a vida antes que se dessem conta do que acontecia.

Brody pôde perceber que o clarão do disparo fez com que os homenzinhos protegessem os olhos e recuassem por um segundo. Largou o rifle e catou um mosquete caído das mãos de um dos inimigos abatidos.

– Mosquetes! Usem os mosquetes, sua cambada de abestados! – bradou alto para que todos pudessem ouvir.

De início, poucos deram atenção a seu alerta. Dúzias pereceram por isso. Todavia, conforme a tática mostrou-se eficaz, mais e mais rifles caíam por terra e mosquetes eram buscados. Os repetidos clarões cegavam as criaturas, mas os disparos de mosquetes eram lentos e desencontrados. O embate chegara a um impasse, com uma pequena vantagem para os olhos-de-lua.

– Linha de frente, busquem os Spencer e recuem! Retaguarda, carregar mosquetes! – era o próprio Tenente Coronel Longstreet quem ordenava. Do alto de seu cavalo tão negro quanto a noite cricundante, parecia que flutuava entre os homens. As tropas rapidamente atenderam às ordens.

– Disparar mosquetes! – retomou Longstreet. O clarão dos mosquetes coordenados cegou as criaturas por tempo suficiente para que a então linha de frente, agora retaguarda, recuasse e se posicionasse, com poucas baixas.

– Mosqueteiros, recuar e recarregar! – sem titubeio os soldados armados com os mosquetes recuaram e iniciaram a recarga.

– Linha de frente, aguardar! – Alguns homens não se contiveram e atiraram a esmo, desperdiçando munição. A maioria, porém, seguiu as ordens e manteve posição.

– Mosqueteiros, à minha ordem, disparem! Linha de frente, aguardem o clarão para disparar!

– Agora! – novamente os mosquetes dispararam. A luz dos disparos cegou os homúnculos e clareou a visão da linha de frente. O rumo da batalha mudou. Várias baixas entre as criaturas, pouquíssimas entre as tropas.

– Repetir manobra! – os homens agora agiam em uníssono. Ao ver seus homens posicionados, o tenente coronel repetiu:

– Agora!

Nenhuma baixa entre as tropas, dezenas de criaturas tombadas.

O espaço para recuo das tropas estava terminando. Já estavam à margem do Tennessee, e Brody à beira de um ataque de nervos, ao imaginar ter que entrar no rio. Foi quando a última saraivada de fuzis derrubou pelo menos uma centena de homenzinhos. Foi o suficiente para que se dessem por vencidos e recuassem de volta para o bosque, desaparecendo rapidamente em túneis escavados na terra.

– Obrigado, diablo! – disse Longstreet dirigindo-se a Brody.

– Misericórdia! Até o senhor, Coronel?! Não vê que isso chama os capetas?! Assim não é possível! Eu não sirvo mais nessa guerra de bestas contra abestados! – Brody deu as costas, atirou o mosquete longe, buscou um dos Spencer, e desertou.

Cruzando a ponte

Foi só quando estava na metade da travessia da ponte que Brody tomou consciência da gravidade do que fizera. Não era mais um Ranger, nem um soldado. Isso o incomodou um pouco, mas não tanto como o medo de levar um tiro pelas costas, era o que um desertor mereceria. Mas o que estava feito, estava feito. Continuou seguindo sem olhar para trás em direção a um futuro incerto, e que podia acabar bem ali. 

Felizmente não houve represálias à sua insubordinação, talvez o coronel estivesse realmente grato, talvez ele simplesmente não quisesse perder ainda mais homens em um eventual combate desnecessário. O mais provável, entretanto, é que todos no acampamento estivessem ocupados em dizimar as criaturas fugitivas. Era o que sugeriam o clarão de incêndio que ardia por trás do ex-Ranger, e os gritos inumanos que vinham da direção do bosque.

O que eram aqueles olhos-de-lua?! Ele já havia ouvido muitas histórias do Além pela boca do seu avô. Contos de bruxas, de assombrações, vampiros, duendes e diabos de várias espécies diferentes. Ele também contava que seu filho, o pai de Brody, tinha ganhado mundo no ofício de combater esses entes maléficos. Brody sempre acreditou na antologia compilada pelo velho Eric Hampton. Nunca precisou ver para crer. Agora era completamente diferente. Ao ver com seus próprios olhos, estava incrédulo.

Logo o dia amanheceria e Brody poderia caçar algo para comer. Não podia mais contar com o rancho do exército. Tanto melhor, gororoba insossa! – pensou. No entanto, sabia que sentiria saudade dessa vida, a camaradagem entre os companheiros, mesmo que fossem todos um abestados, era um porto seguro. Não que a caserna fosse seu habitat natural, preferia o estilo de vida dos Rangers, mas com a Guerra tudo mudou. Os Rangers passaram a servir, e aquela vida não existia mais.

Descobriu-se coberto de fuligem quando finalmente parou para acampar. Ao longe podia ver a coluna de fumaça que se levantava do outro lado do rio. A fome apertava, e àquela altura já se sentia seguro para parar a marcha. Ninguém o seguia, deviam estar ocupados dos assuntos da Guerra, além de exaustos pelas seguidas pelejas com homens e diabos nanicos. Acampou à beira do Tennessee. Pescar parecia a melhor opção para uma refeição farta e rápida. Estava na margem controlada pelos confederados, parecia o lugar mais seguro para estar trajando seu uniforme.

Um cronista dado ao eufemismo diria que ele, exausto pelas batalhas e pela marcha, sucumbiu ao sono após a pesca. Mas a descrição mais realista, preferida por Brody, é que ele simplesmente desmaiou de cansaço logo após deixar mais algumas varas preparadas jogadas no rio para colher os frutos depois do descanso. Desmaiou sentado apoiado no rifle.

Quando acordou, viu as três varas que improvisara puxando forte e com um grande rebuliço na água que se enchia de espuma.

– Oba! Hoje é que consigo comida para a semana toda! – comemorou..

Lampejo de felicidade.

A primeira vara, mais a esquerda desgarrou-se da terra onde estava cravada firmemente. Logo a do meio teve a mesma sorte.

– Mas que peixão é esse?! – pensou enquanto ia correndo para tentar agarrar a terceira que ainda estava presa.

Puxou forte quando percebeu que também ela havia fisgado algo. Usou toda a força inutilmente. Quase tombou rio à dentro. Puxou novamente, agora projetando seu peso para trás para ajudar a tirar o peixe d’água. A linha arrebentou e ele foi jogado alguns metros para trás, perdendo o equilíbrio.

Uma coluna de dois metros de altura e da largura de um homem ergueu-se do rio. Uma fração de uma serpente enorme emergiu, com as duas varas restantes pendendo pelas linhas presas a sua bocarra. Ela deu o bote contra Brody, que mal teve tempo para rolar em direção à arma. As cordas e as varas se enroscaram quando a criatura abocanhou o vazio. O atrapalhamento da besta deu tempo suficiente para Brody recuar para terreno mais firme.

– Bicho lazarento! Não é hoje que você me arrasta para o fundo do rio! – disse, mirando no meio dos olhos do monstro.

Seu treinamento como franco atirador garantiu-lhe o sangue frio para só puxar o gatilho na última hora. A rajada do Spencer foi certeira e abriu um buraco na testa da serpente, que, agora que Brody podia ver toda a extensão, parecia ter 8 metros da cabeça à cauda. Contorcendo-se, a fera logo caiu de volta no rio e foi levada pela correnteza. 

Depois deste encontro Brody se benzeu e ensaiou uma nova oração:

– Oba, Deus! Salve, Rainha! Eu sei que sou um degredado filho de Eva, mas não precisava mandar uma serpente desse tamanho para me tentar, não, viu? Não quero ser malcriado, mas desse jeito fica difícil, trocentos diabos numa noite, uma cobra gigante no outro… É preciso muita fé para se garantir aqui fora dos seus jardins. Bão, tô vivo, isso é que é importante! Agradeço ao Senhor. Ainda bem que o Senhor não ensinou cobra a palitar os dentes, né? Hehehe! Livrai-nos do mal. Amém!

Por dias vagou aleatoriamente, pensando no rumo que daria para sua vida. Ele não sabia fazer muitas coisas, mas o que ele sabia, sabia bem. Era muito bom com o rifle, se defendia bem com a pistola, não era nada mal em amassar a cara de alguém com os punhos, sabia se virar no mato e montar um cavalo. A análise de seu currículo apontava para três destinos possíveis: Ranger, soldado, ou caçador de recompensas. Riscou mentalmente as duas primeiras opções. Parou por um segundo, refez seus cálculos: 

– Este currículo está desatualizado, tem mais uma coisa que eu sei fazer: eu sou bão mesmo é em caçar diabos! Deve tá no sangue, né, vô Eric?!

Por falta de opções, seu destino estava traçado. Brody de agora em diante seria um caçador de recompensas, um caça-diabos.

Esmola demais 

A vida de caçador de recompensas ia bem. Há alguns anos havia deixado de se preocupar com o status de desertor. Eram muitos para que alguém se desse ao trabalho de procurar por eles. Com o caos instalado pela guerra e pela aparente epidemia de diabos, Brody não tinha problemas em arranjar trabalho. Aos poucos foi construindo alguma fama. Não podia reclamar. Na verdade, reclamar era a última coisa que poderia passar pela sua cabeça naquela noite. Ele estava comemorando a boa sorte. 

Havia ganho uma recompensa gorda por um serviço simples. Apenas escoltara uma grande diligência entre duas vilas próximas, sem nenhuma intercorrência. A estrada era amaldiçoada, diziam. Circulavam rumores de que algumas outras carruagens haviam sido misteriosamente atacadas e saqueadas sem que houvesse sobreviventes para contar a história, nem humanos, nem equinos. Após os assaltos, apenas cadáveres deformados eram encontrados espalhados pelo ermo, como se arremessados ou esmagados.

Os contratantes eram uns tipos esquisitos, vestiam-se como padres, ou bem parecido com isso. Umas camisas com colarinho bem alto, quase no gogó, mangas compridas abotoadas justas ao final do punho, deixando apenas as mãos à mostra. Calças vincadas, elegantes, que terminavam em sapatos brilhosos. Todo o conjunto preto, contrastando com suas peles muito claras. Eram muito educados. Mas claramente não eram sacerdotes. Não carregavam um crucifixo, uma bíblia. Alternavam-se como cocheiros durante a viagem. Nos momentos em que um não estava conduzindo, ficava absorto treinando truques com cartas. 

A única exigência que fizeram a Brody durante o serviço era que ele, sob hipótese alguma, mesmo em caso de ataque, adentrasse a carruagem. Como os protegia dos perigos externos, e não do que quer que eles carregassem dentro do veículo, Brody não ligou para isso. O que quer que fosse, uma carga provavelmente valiosa, não era assunto seu, e estava sendo bem pago pela proteção. Nem mesmo lhe permitiram que assistisse a diligência ser carregada. No ponto de encontro marcado, próximo à fronteira com o território comanche, passageiros e carga já estavam embarcados.

Bom, isso era passado. Agora era hora de festejar. Regalou-se com o que de melhor o dinheiro podia comprar na região, comeu, bebeu do bom e do melhor, refez seu arsenal, comprou novas roupas. Só lamentou que não tivesse um chamego para a noite. Cidadezinha puritana… Estava muito feliz, e, como bom cristão, procurou por Deus, em suas preces noturnas, nesse momento de gratidão: 

– Oba, sou eu de novo, Deus! Obrigado pelo serviço molezinha de hoje, viu? Só por hoje nos deixeis cair em tentação. Não se zanga com eu, por favor! Livrai-nos mal. Amém!

A noite estava excepcionalmente quente, ou, quem sabe, Brody tivesse se excedido na bebida, e que lua bonita brilhava lá fora! –  resolveu deixar a janela aberta para circular o ar enquanto dormia. Apanhar um pouco da brisa noturna. Parecia seguro, não estava no térreo, a porta estava trancada, rifle à mão. Que sensação boa! Arrancou as botas e refestelou-se na cama macia da estalagem. Sonhou com a parte da festa que não pudera realizar.

– Moço, moço… – era um sacolejar de leve, macio.

– Ahn? – grunhiu ainda sem entender nada.

– Moço, moço, acorda, moço! – era um sacolejar macio e cheiroso, cheirinho de flor silvestre.

– Hm… que foi? – já mais acordado, mas sem conseguir abrir os olhos.

– Moço, é você o caçador de diabos que tá todo mundo comentando? – era um sacolejar macio, cheiroso e ruivo.

– Oba! Moça! Que você tá fazendo aqui?! – assustou-se ao abrir os olhos, ficou tímido que o sonho tivesse deixado marcas visíveis.

Era uma bela mulher quem o sacudia na cama, vestida com uma camisola branca, sua pele tão alva quanto as vestes, e os cabelos vermelhos como o fogo. Devia ter uns trinta e poucos anos. Seu rosto estava aflito, e lágrimas vertiam-se dos olhos de íris amarelada. A lua cheia reluzia de uma forma sobrenatural sobre o seu semblante.

– O que aconteceu, moça? Por que cê tá chorando? – disse Brody já recomposto e aliviado por perceber que nada denunciava suas saliências oníricas.

– Ai moço… me ajuda!

– Claro, o que a senhora precisa? – Brody resolveu mudar o tratamento, uma moça tão bonita, naquela idade, naquelas bandas, certamente haveria de ser casada.

– Moço, ele matou meu marido e levou meus filhos!

– Quem fez isso, minha senhora? Eu vou lá agora mesmo dar conta desse desgraçado!

– Foi o gigante, moço. O gigante!

– Peraí, senhora! Que história é essa de gigante?! – finalmente acordado o bastante para pensar nisso – E como é que a senhora entrou aqui? A porta ainda tá trancada!

– Moço, por favor, por favor, depressa! Os meus filhos, meus filhinhos! – e começou um pranto sofrido com soluços profundos e convulsionantes.

O pranto desarmou Brody, que simplesmente calçou as botas, tomou o rifle e a pistola, destrancou a porta e seguiu a senhora.

Davi e Golias

Não era difícil seguir a senhora naquela noite clara. Eles partiram para fora da vila, em direção a uma região com pequenos platôs de arenito que se elevavam da planície algumas poucas dezenas de metros. Ela seguia veloz, até que estancou de repente.

– É ali. – disse apontando para um dos platôs.

Brody pôde reconhecer estacionada próxima à elevação a diligência que escoltou.

– Eles levaram meus filhos para o gigante. – disse a senhora enquanto continuava a caminhar devagar, cautelosa e silenciosamente.

Conforme se aproximavam, era possível perceber a entrada de uma caverna na base do platô e uma tênue luz emanando da robusta entrada. Uma tocha ou fogueira, impossível precisar à distância.

O experiente caça-diabos sentia que havia muita coisa errada acontecendo ali. Tudo aquilo era muito estranho. Por que aqueles tipos esquisitos estavam ali? Eles teriam sequestrado os filhos daquela misteriosa senhora? E que raios de gigante era esse?! Mesmo atribulado por estas perguntas, Brody sentia-se compelido a ajudar a senhora, e imensamente curioso. Certamente havia dedo do demo nisso.

Aproximaram-se com calma, esgueiraram-se, escondidos, até a  entrada da caverna. Brody à beira da entrada e a senhora ao seu lado, mais afastada. Ambos colados na encosta do platô. Observaram o movimento. Algo pesado havia sido arrastado para dentro há pouco. Vozes se faziam ouvir.

– Aqui está o que prometemos. Pode ver, estão todos bem. Saudáveis. Intocados. Conforme o combinado.- era um dos contratantes de Brody quem falava.

– Huh – uma voz grave como um trovão respondeu parecendo concordar.

– Podemos contar com a sua parte no trato? – era o outro almofadinha que contratara o caça-diabos.

– Sim – ressoou um novo trovão.

– Ótimo. Enquanto o mantivermos alimentado, você só atacará quem mandarmos você atacar.

– Certo.

– Voltaremos em um mês com uma nova carga. Até lá mantenha a passagem segura. Estamos movendo nossos homens para cá. Só ataque se vir este símbolo nas carruagens.

Brody esticou o pescoço para dentro da caverna e viu a bandeira da União na mão de um dos homens, e uma sombra que se projetava colossal no espaço da caverna. Por um segundo seu sangue gelou.

– O senhor viu eles? Viu o gigante, viu meus filhos?

– Shh… não vi nenhum deles. Mas o gigante está lá.

– O que o senhor vai fazer?

Sem responder, Brody verificou a carga do rifle e da pistola, seguiu pelo corredor, e adentrou o salão da caverna atirando na direção dos seus antigos patrões. Um deles caiu inerte com o disparo do rifle. O outro tiro errou o alvo. O janota que permanecia de pé sacou uma carta de baralho. Um clarão ofuscou o ex-Ranger que só conseguiu sentir o choque do ombro do fugitivo contra seu corpo enquanto evadia da caverna, e um urro inumano que vinha de seu interior.

Enquanto se recuperava, pôde ouvir um grito horrendo vindo do lado de fora. Certamente era o fugitivo. Parecia ter sido atacado por um animal selvagem. Não teve tempo para verificar o que acontecia por lá, a imagem imponente do gigante esfregando os olhos conferia um sentido de urgência à situação que não podia ser evitada. Aos pés da figura de três metros e meio, havia uma gaiola com quatro crianças comanches desacordadas. Elas pareciam bem, mas, definitivamente, não eram filhas da senhora que o trouxera até ali.

Brody disparou seu novo Winchester contra o gigante, os tiros o acertaram. Porém a criatura era sólida como uma rocha. Já recuperado da cegueira repentina, a criatura buscou por sua clava, um tacape do tamanho de um homem, e investiu contra o algoz. Uma nuvem de poeira subiu com parte do arenito se quebrando com o golpe. O chão tremeu. Daquela vez Brody conseguiu esquivar, mas não podia contar com a sorte. Além disso havia as crianças ali, era perigoso demais manter o combate dentro da caverna.

Fez novos disparos contra o monstro, agora com sua pistola, enquanto recuava para a saída da gruta. Àquela distância era impossível errar a figura descomunal. Como o esperado, o gigante ainda avançava. O teto do acesso da caverna ao mundo exterior era baixo, e o corredor estreito, estava protegido de um novo ataque de clava. Mas o gigante também estava ciente disso e mudou de estratégia. Puxou o caça-diabos pela perna e o arremessou contra a parede oposta.

Todas as suas costelas estalaram e ele caiu próximo à jaula das crianças. Era agora ou nunca. Arfando, recarregou o Winchester e começou a preparar a mira. O gigante abaixou e o agarrou com a manzorra, espremendo-o contra o chão, certo de sua vitória.

– Morre, capeta dos infernos! – dois disparos no olho esquerdo do gigante foram o suficiente para que ele tombasse. Felizmente para trás, sem atingir Brody ou a gaiola.

Toda a celeuma do combate acabou por despertar as crianças, que se encolhiam e choravam abraçadas em um canto daquele espaço apertado.

Ofegante, e quase desfalecido, Brody suspirou aliviado. Mais um diabo na sua conta. As crianças, salvas. Deus devia estar satisfeito.

Caça e caçador

Poderia ser que Ele estivesse satisfeito, certamente o diabo ainda não.

A senhora surgiu novamente, sua camisola agora estava tingida de sangue, assim como sua boca e mãos.

– Obrigada, Hampton! – disse lambendo o sangue que lhe tingia os lábios.

– Dona, o que aconteceu, cê tá bem?

– Muito bem, obrigada. Poucas vezes estive tão bem. – disse com uma malícia indisfarçável.

– A senhora tá me assustando. O que tá acontecendo? Essas crianças não são seus filhos, não. Eles são comanche!

– Sim, são comanche. Não, não são meus filhos. Ah, vocês, Hampton, são tão previsíveis…

– Que presepada toda é essa, afinal?! Eu não entendo! – Brody estava prestes a tombar com os ferimentos, mas precisava entender tudo aquilo, a curiosidade o mantinha desperto.

– Claro que não entende, humano. Irei esclarecer. Talvez isso faça você sofrer mais. Essas crianças seriam oferecidas ao gigante para que ele deixasse a estrada limpa para os mascates. Fui eu quem as capturou e entreguei a eles.

– Mas porquê? Quem são esses mascates?

– Você trabalhou para eles, matou um deles e não sabe quem são? Hm… melhor assim. Agonize na dúvida. Eu enganei você. Mas eles? Ah! Eles nunca confiaram em mim. Sabidos! Por isso te contrataram, para protegê-los de mim.

– Dona, eu continuo sem entender nada!

– Eles queriam controlar o gigante e pediram ajuda a mim. Ajuda, a mim! Huhuhuhuhu! – enquanto ela falava uma metamorfose começou, seu nariz alongava-se, seus cabelos vermelhos começavam a se alastrar por todo o corpo, ela foi se curvando e suas mãos tocaram o solo. – Eles sabiam que não podiam confiar em mim, – a transformação concluiu-se com a senhora assumindo a forma de uma raposa gigante – mas que escolha eles tinham? Não estavam dispostos a sacrificar as próprias crianças, e apenas dois deles no território comanche, que chance teriam? Recorreram a mim para capturar as crianças.

– Meu Senhor, o que é isso?! O que a senhora é? – sem forças para mais nada, Brody benzia-se compulsivamente.

– Você está vendo quem eu sou verdadeiramente. Costumo conceder esta dádiva aos moribundos. Sempre odiei esse gigante, ele sempre levava vantagem sobre mim com sua força bruta, e minha astúcia não valia sobre ele, de tão burro que era. Quando os mascates te contrataram para protegê-los de mim, vi a oportunidade perfeita para me livrar de todos eles.

– Seu diabo, maldito! Acha que pode passar a perna em todo mundo?

– É o que eu faço desde o início dos tempos. Huhuhuhuhuh! Enganei você, enganei seu pai, seu tataravô.

– É você, bruxa?!

– Que importa? Você está morrendo e eu vou triunfar mais uma vez. Eu não podia com aquele gigante, e poderia menos com a aliança dele com os mascates. Então, você apareceu. Demos conta dos mascates, você matou o gigante, e eu? Eu ganhei um mês de refeição! – enquanto falava dava voltas em torno da gaiola salivando para as crianças apavoradas.

– Maldita! O que você sabe do meu pai?

– Sei que vocês vão se encontrar em breve! – a fera pulou sobre Brody com suas patas dianteiras segurando seus braços e salivando sobre seu rosto.

– Deus! Qual parte de livrai-nos do mal Você não entendeu?! – disse Hampton fechando os olhos e encomendando sua alma.

Foi quando a Raposa caiu sobre seu corpo, ferida por uma flecha. E sussurrou a seu ouvido:

– Afinal, sou eu quem encontrará seu pai. Mandarei lembranças, huhuhuh, aaaarg!

As últimas coisas que Brody viu foram várias flechas cravando-se sobre o corpo da Raposa, e um par de botas femininas comanche se aproximando.

A visão do Cauda-Longa

Quando deu por si novamente estava em uma padiola, todo enfaixado, e circulando por um acampamento comanche. Reconheceu sua salvadora pelas botas. Parecia que ela intercedia por ele ante a tribo e o curandeiro. Depois ele veio a entender que aquele périplo já era parte do ritual de cura. Circulou por várias tipis até que foi levado a uma maior que o normal, com a escultura de um castor na entrada.

Lá dentro havia uma cama preparada, e algumas pessoas sentadas em torno dela, que iniciaram um cântico assim que ele entrou na tenda. Havia algum desconforto em receber um branco neste lugar sagrado, mas estavam todos gratos por Brody ter ajudado a salvar as crianças. Elas eram o bem maior dos comanches.

Ele não entendeu bem o que se passava, alternava períodos de vigília, sono, e algo entre os dois enquanto o rito seguia. Soube apenas que ao final do processo sentia-se bem melhor. As costelas ainda doíam, mas respirar de mansinho já era possível sem desconforto. Durante todo o processo de cura ficou recluso naquela mesma tenda, exposto aos fumos e vapores que operavam a recuperação do seu corpo com a ajuda dos espíritos.

– Está chegando a hora de partir, Valente. Somos gratos por ajudar as crianças, mas não temos dívida com você, salvamos sua vida.

– Oba, e eu sou muito grato por isso. Salvaria as crianças ainda que isso não trouxesse recompensa. De todo modo, estamos quites.

– Você tem uma missão importante nesta terra cheia de espíritos malignos. Não deve andar só. O Cauda-Longa me deu essa visão. Você deve encontrar outro caçador como você, o caçador-de-alma-partida. Juntos vocês caçarão bestas, homens maus e diabos.

– Olha, que isso de alma partida parece coisa do capeta… devo mesmo me juntar a alguém assim?

– Ele não é maligno, apenas incompleto. É o que o Cauda-Longa mostrou.

– E como eu reconheço um homem-de-alma-partida? Se fosse um homem-com-a-cara-rachada, seria mais fácil.

– Ele não estará só. Ele estará acompanhado do homem-de-um-chifre-só. Serão seus companheiros.

– Bão, um homem de um chifre só, parece mais fácil de reconhecer. Obrigado. Irei partir.

– Vá, que o Grande Espírito o guie. E cuidado, a Raposa é rancorosa, não desistiu de você!

Meia alma

– E foi assim que eu matei o gigante! Duas balas bem no olho do grandão! – Brody bravateava no saloon, enquanto as portas balançavam à entrada.

– Acudam, acudam! Meu amigo está ferido. Quer dizer, ele não está ferido, ferido, mas desmaiou de repente, não sei o que aconteceu. Não consigo fazer ele acordar. Algum médico na casa?

Aquele alarde chamou a atenção do caça-diabos, que voltou a cabeça em direção à entrada. Um homem trajado em peles e farrapos era arrastado pelas axilas por outro abaixado. 

– Eu não sou médico, mas posso ajudar. – Brody caminhou em direção à dupla. – Então o que houve com ele? – os dois deitaram o maltrapilho numa mesa.

– Sabe, nós somos sócios, estamos produzindo chapéus de vanguarda. Estamos fazendo um lote grande. Acho que ele passou tempo demais no curtume, os vapores da química fizeram ele desmaiar. O que eu faço?! Ele é caçador, caça e trata o couro. É ele quem cuida disso! Ai, eu tô perdido! Ele parece estar mais para lá do que pra cá! – tomou o pulso do amigo, levantou o braço e o deixou cair, estava sem tônus, molenga – Tá vendo, parece que tem só meia alma dentro dele agora!

– Vamos levar ele lá pra fora. Essa fumaça toda de tabaco aqui não vai ajudar.

– A propósito, eu sou o Tony.

– Brody, prazer!

Levaram o homem desacordado para fora, desabotoaram a jaqueta e a camisa, abanaram o mais que puderam, sem resultados, todavia. Brody correu até um boticário, voltou com uma ampola de amônia e a quebrou próximo às narinas do convalescente. Em alguns minutos, Phil acordou.

– Muito obrigado, seu Brody! Ele tá vivo! Olha, no momento eu não tenho como pagar pela ajuda do amigo. Estamos com todo nosso capital empenhado na fábrica. É temporário, porque quando o lote estiver pronto! Ah, aí sim! Seremos ricos! Mas, já sei, já sei! Eu ofereço sociedade ao senhor. O amigo salvou meu sócio, é o mínimo do mínimo! Não vai se arrepender! Olha aqui o que estamos fabricando! – Tony orgulhosamente vestiu um chapéu de cone.

Brody, criando em seu íntimo, e pela primeira vez na história, a noção de vergonha-alheia, entendeu o recado do Cauda-Longa. Um caçador com meia alma no corpo, e um homem com um chifre na cabeça. Brody não foi tão ousado a ponto de aceitar a sociedade. Chapéus de cone?! Era demais para ele, mas também não decepcionaria o espírito.

– Ô seu Tony, agradeço a oferta, mas isso é muita modernagem para mim. Eu me contento se o senhor e o seu sócio me contratarem como guarda-costas. Isso é serviço que conheço e sei cumprir.

– Negócio fechado! – Tony e Brody apertaram as mãos longamente. Estavam ambos aliviados, mas por razões distintas Tony por não precisar dividir parte de sua futura fortuna, Brody por ter se livrado de um mal. Amém!

Escrito por: Nilson Doria


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