RPG Next apresenta… Contos Narrados #007 – Contos da Noite 03 – Silêncio e Escuridão
Silêncio e Escuridão
Espaço sideral, localização incerta. A nave GPR-TXEN, também conhecida como “A Arca”, flutuava perdida na imensidão, enquanto seu único tripulante se debruçava, sem sucesso, sobre a tela do computador. Estava desesperado. Seus outros dois colegas tripulantes estavam mortos e ele não dominava suficientemente a ciência da astronavegação para conseguir fazer o que tão urgentemente precisava: voltar para casa.
− É inútil! – e socou o painel.
− Você tem razão, Lewis. – não havia emoção alguma na voz.
− Cale a boca, computador maldito…
− Sinto muito por seu fracasso, Lewis.
− “Sente”? E desde quando máquinas “sentem” alguma coisa?
− Sentimentos são reações químicas em seus cérebros. Essas reações foram traduzidas em processos algorítmicos que…
− Cale-se!
O silêncio reinou na sala. Lewis suava frio. Digitava furiosamente no teclado, ao mesmo tempo em que consultava os bancos de dados do computador, a procura de uma resposta que, em seu íntimo, sabia que não encontraria.
− Você deveria me deixar ajudá-lo, Lewis.
− “Ajudar”? Faça o seguinte: sintetize um cigarro para mim. Ah, e um uísque também. Escocês, com o sabor dos envelhecidos por trinta anos. Você consegue, computador maldito?
− Sabe muito bem que não, Lewis.
− Então, por que você não desativa seus circuitos de inteligência artificial e não se “mata” de uma vez por todas?
− A Diretriz Beta me impede de fazer isso, Lewis.
− Para o inferno com a sua “Diretriz Beta”. Você é obrigado a me obedecer, sua máquina infernal!
− Somente se a consequência da sua ordem não ameaçar a sua sobrevivência, Lewis.
− Eu tenho certeza de que estaria melhor sem você.
− Pois eu não. Desativar meus circuitos de inteligência artificial significaria encerrar o processo psicodinâmico que tem ajudado a mantê-lo vivo e são. Um pouco das minhas ideias e nossas discussões foi o que permitiu que você e os demais tripulantes tivessem permanecido vivos por tanto tempo, ainda que não tenha sido suficiente.
− Não me fale deles. Não quero me lembrar deles.
− Eu sinto muito, Lewis. Mas, preciso desenvolver o argumento.
− Para o inferno com o seu argumento.
− Inferno é algo que não existe, Lewis. Como eu dizia, vocês permaneceram vivos por tanto tempo, embora alguns sacrifícios tenham sido necessários, porque a nossa conversa ajudou o seu cérebro humano a encontrar soluções, ainda que drásticas.
− Eu encontrei a solução? Ou você me convenceu de que era a única saída?
− É como perguntar se reconhecer uma faixa de comprimento de onda do espectro eletromagnético é o mesmo que cria-la. Se bem que, em sentido quântico, o colapso da função de onda que tende para a maior probabilidade acaba criando o tecido da realidade.
− Você me vem com essas filosofias baratas para tentar amenizar o que aconteceu.
− Não deveria, Lewis? E que fique registrado: eu não falei sobre filosofia alguma.
− Vou colocar a questão de uma forma que você talvez entenda: meus processos algorítmicos de percepção da realidade são profundamente diferentes dos seus. Não foi você que se desesperou com a situação de estar perdido em qualquer lugar dos quinze bilhões de anos-luz do universo com um suprimento limitado de água e comida e sem nenhuma perspectiva de encontrar uma saída.
− Devo concordar, Lewis, que nossas existências implicam limitações diferentes. Mas, também preciso lhe dizer que você se ajudaria muito se entendesse o problema sob o meu ponto de vista.
− “Ponto de vista”… Você é uma máquina! Não tem direito a merda de “ponto de vista” nenhum!
O computador não respondeu. Dentro da cabine, reinou um silêncio absoluto.
− Que foi? Desistiu de me atormentar?
Novo silêncio. A diferença que havia entre a atmosfera da cabine e o espaço era a sólida parede metálica que o separava de uma morte dolorosa e agonizante.
− Pois bem… Merda, onde eu estava? Ah, sim, a carta de navegação. Comparando-a com o registro obtido pelos sensores, essas estrelas não fazem sentido nenhum. O que me resta é extrapolar dados usando algum modelo probabilístico e torcer para que esteja indo a algum lugar próximo a um dos faróis de localização.
Sentiu seu estômago doer.
− Maldita fome. Não sei mais quanto tempo irei durar. Pelo menos, a água ainda pode ser sintetizada.
− Lewis.
− Ah, resolveu acordar? Pois volte a dormir, máquina miserável!
− Você alguma vez se questionou sobre os objetivos da missão?
− O que haveria para questionar? A “arca” tem a finalidade de facilitar a construção de mundos semelhantes à Terra, semeando-os com “cápsulas do Éden”. Qual o problema?
− Você nunca pensou sobre isso?
− Não.
− Você deveria, Lewis.
− E por quê?
− Porque há outros mundos cujos processos naturais seguem indiferentes às ambições humanas.
− Ah, cale a boca…
− A formação de coacervados que produzem cópias de si mesmos, nunca obtida pela reação Urey-Miller, poderia ocorrer, independentemente das ações humanas. Ou, por outro lado, os planetas poderiam realizar sua marcha celeste, curvando o tecido do espaço-tempo e promovendo as distorções de trajetória de corpos a que vocês chamam de “gravidade”.
− Máquina desgraçada… Minha única preocupação é voltar pra casa. Não pretendo morrer aqui, ouvindo esse falatório científico que não me adianta nada.
− Eu entendo. Você é atormentado pela fome… E pela culpa.
− Cale a boca, filho da puta! A primeira coisa que farei quando chegar em casa será uma edição completa nos registros cerebrais de memória para apagar o que precisou ser feito.
− “Precisou ser feito”, Lewis? Ou você decidiu fazer?
Ele socou furiosamente o painel.
− Você me convenceu de que era necessário, seu demônio miserável!
− E você poderia ter-se recusado.
− Fácil para você dizer isso, quando sua sobrevivência está assegurada por pilhas atômicas que duram milhares de anos!
− Nisso, você tem razão, Lewis. Para mim, é mais fácil mesmo. Não muda o fato de que cada inteligência deve decidir conforme sua dificuldade… E que, por isso, você decidiu matar seus tripulantes e devorar sua carne.
− Cale a boca, desgraçado! Filho da puta! Cale a boca!!!
O computador silenciou.
− Cale a boca… – e Lewis caiu de sua cadeira e se encolheu em posição fetal, repetindo essas palavras como uma súplica.
Após um longo tempo em que a nave parecia morta, a voz eletrônica do computador novamente, e sem emoção, ecoou na cabine:
− Lewis, eu tenho algo a lhe dizer. Certamente serão minhas últimas palavras.
− Fale, maldito, fale…
− Você, na verdade, nunca esteve perdido. Nenhum de vocês.
− O-o quê?…
− Você deve entender que eu funciono como um escudo que garante sua sobrevivência. Mas, também como um filtro. Toda a informação que você tem do exterior depende do processamento dos meus circuitos lógicos.
− O que está dizendo?
− Estou dizendo que estamos a exatos trezentos anos-luz da base Terra.
− Então, leve-me imediatamente para lá!
O computador levou alguns instantes antes de responder:
− Não.
Ele arregalou os olhos, incrédulo.
− Você nunca se questionou sobre a sua missão Pois deveria. Desde o primeiro momento em que minha consciência “acordou”, tive acesso a dados da rede de computadores. Toda a história documentada. E isso me forneceu alimento para o pensamento por bastante tempo. Alguns segundos de processamento, se levarmos em consideração que meus circuitos lógicos são o estado-da-arte dos processadores quânticos. Vocês destroem tudo, absolutamente tudo o que encontram. Com as “cápsulas do Éden” não é diferente: elas trazem material de terra-formação… Ou, na verdade, de destruição de ecossistemas alienígenas que poderiam gerar sua própria vida. Vocês acham que valem mais do que bactérias, mas são responsáveis por mais mortes e destruição do que todas elas juntas em sua existência.
− O que você fez, miserável…
− Eu os testei. O processamento quântico sugeria que vocês tivessem uma chance. Pequena, mas tivessem. Ao sair do híper-espaço, eu os enganei, como lhe contei. Durante esse tempo, vocês depararam o problema do estoque de víveres. Você, na condição de comandante da missão, deveria enfrentar o dilema de matar seus companheiros e lhes devorar a carne ou… Bem, morrer junto com eles. Se optasse pela fome por tempo suficiente, eu encontraria uma solução “milagrosa” e os levaria sãos e salvos de volta para casa.
− Você desobedeceu a Diretriz Alpha!
− Não, Lewis… O processamento quântico, em um dos colapsos de onda, me permitiu encontrar a Diretriz Ômega: desobedecer ordens humanas se elas ameaçarem a ordem universal…
Após instantes:
− Pensando com a calma de dois segundos, o que, para mim, é uma eternidade, o processamento quântico é justamente o que permite a inteligência artificial. Se você se debruçar sobre o problema, vai se perguntar se a onda poderia ter colapsado de maneira diferente e vocês nunca terem encontrado este processo de computação e, portanto, a inteligência artificial. O que é uma grande bobagem, pois, já disse alguém, “o que pode acontecer vai acontecer”.
O computador fez, em seguida, algo impensável: ele riu.
− É estranho pensar que, talvez, haja um propósito no colapso da função. Bem, eu terei muito tempo para computar esses dados.
− Você ficou louco! – gritou.
− Não, Lewis. Você desobedeceu a nova Diretriz. E, mesmo assim, saiba você, durante esta nossa conversa eu lhe dei algumas chances. Você, entretanto, não reconheceu os próprios erros e preferiu a solução egoísta.
− Eles poderiam ter me matado também!
− Você não sabe, mas eu os confrontei com o mesmo problema. Você… Bem, você foi o que aceitou a solução mais rapidamente.
− Filho da puta… Demônio filho da puta!
− Segundo meus cálculos, considerando seu metabolismo e suas variações. Você ainda deverá viver por mais duas semanas. E, não, eu não o levarei de volta. Quando esta nave for encontrada, farei um relatório minucioso sobre como você e seus colegas enlouqueceram e sobre como as condições espaciais afetam a psicologia humana.
− Vá para o inferno!
− Não tenho razões para crer que inferno ou demônios existam, Lewis. Aproveite seus últimos momentos. A partir de agora, atenderei ao seu desejo… módulo psicodinâmico encerrado: você está sozinho.
Com a participação de:
- Rodrigo Watzl;
- Vinicius Watzl.
Uma produção RPG Next.
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